terça-feira, 14 de abril de 2009

"Antidepressivos, Graças a Deus"

“Muito prazer, sou uma F34.1”. Assim a jornalista Catia Moraes, autora de Eu tomo antidepressivo, graças a Deus! (Record) manifestou o alívio que sentiu ao encontrar, na lista de sintomas elaborada pela CID-10, (Classificação Internacional de Doenças da OMS) a descrição dos transtornos de humor que “explicavam” sua depressão. A frase não é tão irônica quanto parece. A depressão, que muitos analistas e sociólogos consideram o sintoma mais expressivo das contradições sociais do século XXI, tornou-se, com o aval da ciência, uma prótese de identidade para os sujeitos perdidos entre as referências voláteis do mundo contemporâneo. Por isso mesmo, é uma doença com enorme potencial de mercado. Se os deprimidos incomodam por sua inapetência para a grande festa do consumo que anima a vida social no mundo industrializado, seu apetite por novas medicações vem alavancando as vendas da indústria farmacêutica, que crescem cerca de 22% ao ano no país e movimentam anualmente 320 milhões de dólares . Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para a diversão. Observa-se um estranho conluio entre a medicina e a doença: a auto-identificação do deprimido responde às novas estratégias de vendas dos laboratórios farmacêuticos. Folhetos explicativos, editados pelos laboratórios e pelo Ministério da Saúde, alertam para os perigos deste mal insidioso e orientam o leitor a detectar os primeiros sinais da doença, em listas de sintomas tão abrangentes que praticamente qualquer um pode se incluir nela. A propaganda estimula o auto-diagnóstico – a busca do medicamento é mera conseqüência. O livro de Cátia Moraes arremeda esta estratégia. Admito, de boa fé, que a autora não tenha escrito sob encomenda de nenhum fabricante de antidepressivos. Não faz diferença; o livro é uma peça publicitária. Escrito em estilo “pra cima”, recheado de expressões joviais que celebram as delícias da vida monitorada pelos antidepressivos, o livro alterna depoimentos triunfantes de consumidores de remédios com capítulos informativos ao modo dos panfletos dos laboratórios farmacêuticos. A começar pela superficialidade: cinco páginas explicam o que é a neurociência, dez páginas resumem o que são e como agem os antidepressivos, outras seis relatam os milagres da “eletroestimulação”, oito enumeram os “transtornos de humor ou afetivos” – as quais incluem praticamente todas as manifestações de dor psíquica – e por aí vai. O texto todo exala o entusiasmo dos convertidos. Os casos “clínicos” parecem inspirados nas antigas propagandas de fortificantes ou remédios para emagrecer, na base do “eu era assim/fiquei assim”. Como toda boa estratégia publicitária, a argumentação da autora não deixa de contemplar possíveis argumentos críticos. Noblesse oblige, a “psicoterapia” é recomendada como valor agregado ao tratamento medicamentoso, sem qualquer consideração efetiva que relacione a depressão com o conflito inconsciente e o desejo. Para que, afinal? O desenvolvimento de medicamentos cada vez mais especializados, ao reduzir o sujeito a uma somatória de transtornos de comportamento, não só dispensou a psicanálise como tem provocado uma falência teórica no seio da própria psiquiatria, que abandonou a produção de teorias sobre as doenças mentais.
Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de, entre outros, O tempo e o Cão: A Atualidade das Depressões (Boitempo: no prelo).

Porta de Entrada - Acolhimento

Em toda a Rede de Atenção em Saúde Mental de Araxá estão sendo organizados e reorganizados Grupos de Acolhimento, para que as pessoas tenham acesso aos Serviços de Saúde Mental. Esta é uma prática que já existia e que agora está sendo unificada e ampliada. São Grupos que contam com dois ou mais profissionais de saúde, incluindo o Psiquiatra, e que têm como objetivos principais: humanizar e universalizar o acesso, dar resolutividade aos encaminhamentos e, principalmente, interromper o ciclo de psiquiatrização e psicologização das demandas. Por meio de uma Escuta Qualificada, os profissionais ajudam as pessoas a entenderem melhor o quê e por que estão procurando algum tipo de auxílio. Esperamos que com a disseminação das Oficinas Terapêuticas por toda a comunidade, entre outras alternativas de produção de vida, as pessoas possam reinventar suas histórias com criatividade, para que não necessitem lançar mão o tempo todo de saídas tão pouco, ou nada propiciadoras de saúde. O anestesiamento e a eliminação do sujeito, do sofrimento e da falta, se fazem necessários quando não há a possibilidade de criar, inventar e viver dignamente. Bom mesmo seria se o Acolhimento pudesse ser a Porta de Entrada para todos os Serviços de Saúde da Rede. Será que é um sonho? Não. Este dispositivo já foi adotado em vários municípios do Brasil, incluindo grandes cidades. O SUS e o povo agradecem!

Supervisão Clínico-Institucional

A Supervisão para a Equipe de Saúde Mental está acontecendo no Ambulatório de Saúde Mental, todas às segundas-feiras, entre 7h30 e 9h30. Todos os profissionais da rede estão convidados a participar, trabalhadores do Ambulatório, das UNIs, PSFs ...

Supervisão Clínico-Institucional

O ofício da supervisão e sua importância para a rede de saúde mental do SUS

Exercido por profissionais de formação teórica e prática diversas, o ofício da supervisão apresenta algumas características comuns, no entendimento da CNSM, apresentadas a seguir:
1. A supervisão deve ser "clínico-institucional", no sentido de que a discussão dos casos clínicos deve sempre levar em conta o contexto institucional, isto é, o serviço, a rede, a gestão, a política pública. Assim, ao supervisor cabe a complexa tarefa de contextualizar permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, levando em conta as tensões e a dinâmica da rede e do território. Em outras palavras: buscando sustentar o diálogo ativo entre a dimensão política da clínica e a dimensão clínica da política.
2. Escolhido pelo município onde se localiza o serviço e a rede, espera-se que o supervisor inicie sua tarefa contando com condições propícias de acolhimento pela equipe, de modo a também acolhê-la em suas dificuldades, tensões internas, sobrecarga, construindo um ambiente de trabalho favorável. Estudos (em relatórios preliminares) do edital MS/CNPq 2005 vêm mostrando que as equipes dos CAPS têm uma representação positiva de seu trabalho, mas se mostram muito desgastadas com as dificuldades concretas da gestão pública (somadas à complexidade da tarefa clínica que realizam). Cabe ao supervisor compreender esta dinâmica, desvelando-a para a equipe – multidisciplinar, heterogênea, com tradições teóricas diversas e fenômenos grupais inevitáveis -, de modo a ajudar no andamento da vida do serviço e na construção permanente do trabalho da equipe (marcado por vitalidade e conflito).
3. Qualquer que seja sua tradição teórica predominante, cabe ao supervisor enfrentar ele mesmo o desafio do novo cenário de sua prática (o CAPS e a rede pública de saúde), ajudando a equipe a buscar permanentemente, em cada caso clínico, a construção dos conceitos operativos de rede (de serviços de saúde, de outras políticas intersetoriais, familiar, social, cultural, laboral) e de território (o lugar da vida do sujeito, suas características culturais, suas interações significativas). Sujeito, rede e território articulam-se no projeto terapêutico, cujo objetivo final é ajudar o serviço e a rede a apoiarem o paciente e sua família na construção da autonomia possível.
4. Este "novo cenário" da prática do supervisor é o espaço social concreto e histórico da vida dos sujeitos e da instituição, no âmbito de uma política pública, o SUS. O supervisor deve trabalhar na direção da construção do SUS, buscando sempre vencer a dicotomia, que com freqüência se instala, entre as diretrizes gerais da política e a construção particular do cuidado clínico, que seja capaz de levar em conta a complexidade da dimensão existencial de um sujeito singular em um determinado território.
5. As 3 dimensões referidas (a supervisão como clínica e institucional; a integração da equipe de cuidado; e a construção do projeto terapêutico articulando os conceitos de sujeito, rede, território e autonomia) são características da tarefa da supervisão, e perfeitamente harmonizáveis com formações teóricas diversas (desde que o supervisor esteja aberto a exercer sua competência clínica no cenário peculiar da rede pública de saúde mental). Mas este desafio – de exercer a competência técnica no cenário da saúde pública, harmonizando as diversidades profissionais e teóricas - não é só dos supervisores, mas uma condição para o êxito mais permanente da Política Nacional de Saúde Mental.
6. Embora recente, a supervisão clínico-institucional em saúde mental já tem uma história. É uma prática que surge no contexto dos inicialmente chamados "serviços substitutivos", que hoje integram a rede de atenção psicossocial. Os novos supervisores precisam apropriar-se desta história, da política nacional de saúde mental, dos problemas e desafios dos novos serviços, do contexto do SUS. Inicialmente, sugerimos, para aqueles que não os conhecem, a leitura de um conjunto de documentos básicos da política (Manual dos CAPS, Relatório de Gestão 2003-2006, Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, Saúde Mental e Economia Solidária, Saúde Mental da Criança e Adolescente, Legislação de Saúde Mental, WHO-AIMS Report Brazil 2007), facilmente acessíveis no endereço www.saude.gov.br/bvs/saudemental. Em seguida, vale a pena familiarizar-se com a recente produção teórica em torno do trabalho dos CAPS, da rede de atenção psicossocial e do próprio ofício de supervisão.
7. Para propiciar um diálogo viável e permanente, o Ministério da Saúde está buscando concretizar a proposta de uma "Escola de Supervisores", nascida do I Congresso Brasileiro de CAPS (São Paulo, 2004), um dispositivo capaz de permitir a difusão e intercâmbio do ofício de supervisor. Uma "Escola" aberta, pública, que permita a articulação entre os supervisores dos diversos territórios do país.
Atenciosamente,
Coordenação Nacional de Saúde Mental
Dezembro de 2007

Oficinas no Ambulatório de Saúde Mental

O espaço para as Oficinas no Ambulatório de Saúde Mental também está ficando restrito. Que bom! Assim como na Unileste, lá os usuários se encontram há anos, para conviver e produzir. As produções por lá andam intensas! Agora é pensar em que lugar naquela região, as Oficinas poderiam funcionar. No Centro de Convivência, no SESC ...? Onde? A novidade é que as parcerias não param de aumentar. A Daniela, nossa auxiliar administrativa e muito mais, também é cantora e está participando das Oficinas. A irmã dela, Elayne, que faz Faculdade de Design em Uberaba e já trabalhou na Cooperare, também está chegando para nos auxiliar. A mãe da Francielle doou uma máquina de costura. Que legal! Será que já podemos avistar uma Cooperativa em nossos horizontes? Uma Cooperativa de todos os usuários de saúde mental da cidade, ou de todos os usuários de saúde da cidade, ou de todos aqueles que quiserem reinventar a vida com alegria e solidariedade? Fiquei entusiasmada!

Grupo de Convivência - Unileste

O Grupo de Convivência que existe na Unileste há muitos anos, agora poderá ser ampliado e inserido na comunidade. O espaço já estava ficando pequeno! A Patrícia sugeriu que pudesse ser na Igreja daquela região, e a colega Zezé se colocou à disposição para falar com o Padre. Estávamos conversando sobre isso, quando o telefone da Zezé tocou. Adivinhem quem era? O Padre! Ele perguntou se ela havia ligado pra ele, e ela disse que não. Mais do que depressa ela já aproveitou para falar sobre a idéia com ele, que concordou prontamente. Agora falta apenas conversar com o Grupo e ir conhecer o espaço. A Francielle disse que a maior dificuldade enfrentada por eles, é com a falta de materiais para o funcionamento da Oficina - tecidos, tintas ... A máquina de costura também estragou. Temos que pensar em alternativas para esta situação. Enviem sugestões.

Geração de Renda e Cidadania

Em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Rural - SDR, no Projeto Limpando e Produzindo, a proprietária do terreno ao lado do Ambulatório de Saúde Mental, a Dona Marni, cedeu aquele espaço para que os usuários possam produzir hortaliças, vida e cidadania. A produção será revertida em benefício daqueles que participarem da Oficina. O pessoal da SDR, representado pelo Daniel, já providenciou a limpeza do terreno, as ferramentas que serão usadas pelos usuários, entre outras coisas. Agora, o Davi, que é casado com a Giovana, dentista da rede e sobrinha da Angela, nossa colega, está tentando conseguir o esterco na ARAP. Quem quiser colaborar de alguma forma, fale com a gente. A idéia é que possamos multiplicar esta ação em todas as regiões da cidade.

Antonio Lancetti em Uberaba

Olá, pessoal. No dia 18 de maio, Antonio Lancetti estará em Uberaba. Poderemos nos encontrar com ele à tarde e à noite. O formato desse encontro ainda está sendo definido pelos amigos da Fundação Gregorio Baremblitt (Caps Maria Boneca). Penso que será uma oportunidade imperdível !!! Em breve trarei todas as informações.

sábado, 11 de abril de 2009

Atualização em Saúde Mental - Maio 2009

Dia 08/05 - 8h às 12h - Princípios da Reforma Psiquiátrica - Jorge Bichuetti (Psiquiatra - Caps Maria Boneca)
13h30 às 17h30 - Os Transtornos Psíquicos Graves - Luiz Carlos (Psiquiatra - Caps Maria Boneca, Caps Uberaba e Saúde Pública Ibiá)
Dia 22/05 - 8h às 12h - O Recurso aos Psicofármacos como Auxílio ao Tratamento - Celso Peito (Psiquiatra - Caps Frutal e Saúde Pública Iturama)
13h30 às 17h30 - Abordagem dos Usuários Mais Frequentes das Unidades Básicas - Sandra Pimenta (Psicóloga Caps Uberaba)
Dia 29/05 - 9h às 12h30 - O Tratamento dos Portadores de Sofrimento Mental na Rede Substituiva ao Hospital Psiquiátrico - Fátima de Oliveira (Psicóloga - Caps Maria Boneca)
14h às 17h30 - Fórum de Discussão Sobre os Serviços de Saúde Mental da Microrregião de Araxá (formato a ser definido).

Local a ser definido.
Divulguem e convidem todas as pessoas interessadas, não somente os trabalhadores da saúde.
Inscrições: Ambulatório de Saúde Mental - 3691.7138 ou 7137.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Depressão e o Tempo


O que a teoria freudiana sobre a melancolia pode ensinar ao psicanalista sobre a clínica das depressões? Muito pouco, quase nada. No entanto, nos debates de que tenho participado recentemente em torno desse tema, assim como em textos de diversos autores sobre o mesmo assunto, não é incomum encontrar certa confusão entre as características dos quadros depressivos e melancólicos, que chegam a ser abordados, indiscriminadamente, como se fossem a mesma coisa. Não são. As características “depressivas” do melancólico – negativismo, falta de ânimo, falta de auto-estima, fantasias auto-destrutivas, distúrbios somáticos e outras tantas manifestações de dor psíquica – podem se parecer, empiricamente, com as dos depressivos. Mas assim como algumas crises histéricas e algumas construções de pensamento delirantes entre os obsessivos podem ser confundidas com sintomas psicóticos, a semelhança fenomenológica entre a tristeza e o abatimento dos melancólicos e dos depressivos não são manifestações da mesma estrutura psíquica. Tal confusão talvez se deva ao fato de Freud, cujo texto “Luto e Melancolia” (1915) trouxe uma contribuição decisiva e inovadora para a compreensão da clínica da melancolia, não ter dedicado nenhum texto ao tema das depressões. Se as noções de depressão, estados depressivos, psicose maníaco-depressiva, ainda não terminaram de ser resgatadas do campo exclusivo da psiquiatria para o da clínica psicanalítica, o termo “melancolia” aportou em terras freudianas depois de percorrer a cultura ocidental, desde Aristóteles, carregada de signos de sensibilidade, originalidade, nobreza de espírito e outras qualidades que caracterizam o gênio criador. Tais qualidades da alma humana não se encontram entre as observações de Freud a respeito dos sintomas melancólicos. A teoria freudiana da melancolia promoveu duas rupturas simultâneas: no plano clínico, seu texto de 1915 trouxe a melancolia do campo da medicina psiquiátrica – em que era chamada de “psicose maníaco-depressiva” – para o da clínica psicanalítica. No outro plano, o da história das idéias, o texto de Freud acabou de afastar definitivamente a melancolia da longa tradição pré-moderna das representações, predominantemente sublimes, atribuídas aos homens de caráter melancólico, desde a antiguidade grega. A teoria freudiana sobre a melancolia ocupou um lugar tão importante no pensamento clínico do início do século XX que o conceito de depressão foi praticamente englobado pelo de melancolia, quando não confundido com ela. Nos últimos trinta anos, no entanto, o crescimento a níveis epidêmicos dos diagnósticos de depressão impõe aos psicanalistas uma separação teórica mais rigorosa entre esses dois campos clínicos. É preciso empreender novos esforços conceituais para pensar a especificidade da depressão de modo a impedir que esta forma de mal estar, agravada pelas condições da vida contemporânea, seja inteiramente apropriada pela medicina e pela psicofarmacologia. A teoria da melancolia é insuficiente para subsidiar a clínica das depressões, esta forma de mal estar que a indústria farmacêutica vem tentando circunscrever exclusivamente sob seus domínios, como se o deprimido sofresse apenas desarranjos e déficits químicos em um corpo sem sujeito. Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para o consumo e a diversão...
O tempo do sujeito e o tempo do Outro
Desde 2005 venho investigando a questão das depressões do ponto de vista da relação dos sujeitos com a dimensão do tempo, ao qual ele é introduzido através das práticas do Outro materno. Meu interesse é investigar a relação dos depressivos com a delicada temporalidade psíquica, em contraste com a velocidade da vida social. Se a psiquiatria explica a lentidão depressiva como resultante de um déficit nos neurotransmissores, do ponto de vista da psicanálise ela resulta da posição do sujeito diante do Outro. Na origem da posição depressiva, encontramos um sujeito atropelado pela urgência do Outro. O psiquismo, em Freud, é uma instância temporal que se inaugura a partir da espera de satisfação. O tempo que se inaugura com a espera de satisfação da pulsão é a primeira dimensão da falta que se apresenta ao infans, a partir da qual ele haverá de dar início ao trabalho de representação do objeto faltante. O psiquismo nada mais é do que uma rede de representações tecida sobre um fundo vazio. A pressa do Outro materno, o excesso de solicitude e/ou de ansiedade de certas mães em atender rapidamente às menores manifestações de insatisfação do infans, intercepta a temporalidade psíquica, favorecendo a posição depressiva do sujeito no fantasma. A sociedade contemporânea vem produzindo – e sofrendo com isso – uma invasão de formas imaginárias deste Outro apressado, que não admite nenhum tempo ocioso que não seja rapidamente preenchido por ações que visam satisfação imediata. Em função disso, o recuo do depressivo ocupa o lugar do sintoma social. Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas – que do ponto de vista do sujeito em formação, são entendidas como demandas – do Outro, para se refugiar debaixo das cobertas. Este é o lugar que caracteriza o recuo do depressivo em relação à vida. Segundo alguns autores , o ninho que o depressivo faz para si mesmo debaixo das cobertas, onde o tempo não passa, funciona de maneira paradoxal. “Debaixo das cobertas” o depressivo encontra tanto um esconderijo quanto um lugar de gozo, de onde tenta, mas não consegue, se proteger contra a ameaça de ser engolido pelo Outro materno. Quanto mais o depressivo recua, mais se coloca à mercê da demanda da “bocarra de jacaré”, na dramática expressão utilizada por Lacan para se referir à mãe do infans. O tempo, como bem escreve François Julien, é “a última figura da transcendência no seio do pensamento ocidental ”. Esta última possibilidade de pensar e também de experimentar a transcendência, através da multiplicidade dos fenômenos temporais, vem se reduzindo drasticamente. O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possível conceber outra forma de estar no mundo que não sejam as da velocidade e da pressa. “Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea. Na prática, tal mandato corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriram para o desfrute da vida privada, nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e proibições da vida religiosa, nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência subjetiva da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, esta forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que torna a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção. Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso “aproveitar” o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso. A este imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão, seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado – um “tempo que não passa ”. Se existe uma relação entre o estado subjetivo que os antigos chamavam de melancolia e a percepção do tempo – chamo a atenção para a freqüência com que encontramos ampulhetas entre os instrumentos que cercam as figuras dos melancólicos, a partir do Renascimento – esta relação se expressa de maneira dramática na lentidão dos depressivos contemporâneos, incapazes de atender à urgência das demandas do Outro. Tal lentidão, que se apresenta tanto aos olhos do sujeito deprimido quanto aos dos psiquiatras como mais uma entre as muitas disfunções características da depressão, talvez tenha algo a ensinar ao psicanalista. É razoável supor que a temporalidade moderna sacrifica o sujeito a seus imperativos; vale perguntar, então, de que ordem é a recusa que a depressão impõe a alguns sujeitos desviantes dessa norma contemporânea que insiste em anunciar: o futuro já começou. Não nos precipitemos. Ainda que, de acordo com Freud, a aniquilação seja o objeto definitivo do gozo da pulsão de morte, não devemos nos deixar fascinar, na clínica, pela negatividade dos depressivos. Se com sua recusa eles se aproximam perigosamente da verdade sobre o vazio Real que funda o psiquismo, o apego à negação dos depressivos deve ser entendido principalmente como o avesso de uma urgência. Sua lentidão encobre a inapetência característica daqueles que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vêem incapacitados para preencher este inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, a que chamamos vida. Ao contrário do melancólico, abatido pela sombra de um objeto que não compareceu a tempo, os depressivos, preenchidos pela solicitude do Outro, foram poupados de inventar seus próprios jogos de fort-da – daí decorre o sentimento de vazio interior de que se queixam em análise. Instalados em um tempo que lhes parece vazio, sob sua aparente imobilidade, os depressivos estão mais próximos de encontrar a temporalidade distendida da contemplação e do devaneio do que os neuróticos mais bem adaptados às condições que a vida social lhes impõe. O tempo vazio do depressivo recusa a urgência da vida contemporânea e remete a um outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou pelo menos, reprimiu. O psicanalista que escuta um depressivo deve ficar atento para a dimensão deste saber sobre o tempo que se encontra encoberto pela sua imobilidade angustiada. A indústria farmacêutica se empenha em oferecer ao depressivo substâncias capazes de levantar seu ânimo, colocá-lo em movimento, adaptá-lo ao tempo do Outro. A psicanálise, em contrapartida, lhe oferece a perspectiva de um percurso sem pressa, a partir do qual ele possa criar, ou redescobrir, suas próprias modalidades rítmicas de jogar com a falta, suas próprias brincadeiras de fort-da.