segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cultura industrial x alianças globais: o caso das mamadeiras.



Este artigo resume a tese de doutorado "O desdesign da mamadeira: por uma avaliação periódica da produção industrial", defendida em março de 2010, na PUC- Rio.

Foi escrito em 2009, originalmente para o congresso ISA-ABRI, de Relações Internacionais, provocando imensa surpresa na assistência quando de sua apresentação, pelo impacto do conteúdo e também pelo inusitado do tema no citado fórum.
Reações semelhantes ocorrem nas diversas oportunidades em que o trabalho vem sendo exposto para áreas diversas da Saúde, como a Educação e o Design, além das Relações Internacionais. O fato é que, para grande parcela da população, questionar a eficácia e adequação da mamadeira persiste sendo uma ideia impensável.

A tarefa maior da autora foi a de reconhecer falhas na formação e na atuação profissional dos designers, profissionais voltados à concepção de produtos industriais, pelo fato de a atividade estar alheia ao problema, tendendo a considerar o produto como "acima de qualquer suspeita" e projetando versões pretensamente mais e mais seguras do objeto em todo o mundo.

Há mais de trinta anos o consenso científico atesta a superioridade do leite humano para a alimentação de recém-nascidos e comprova a grande influência da administração de leites artificiais no aumento das taxas de morbidade e mortalidade infantil. No entanto, ainda hoje tal conhecimento tende a permanecer restrito à esfera da saúde pública nos países signatários das alianças internacionais em prol da causa, escapando ao domínio da sociedade como um todo.

O artigo busca traçar um paralelo entre o saber científico produzido com relação à alimentação artificial de bebês, os avanços industriais alcançados pela produção de mamadeiras e o esforço empenhado por alianças globais no sentido de difundir e defender esse conhecimento.
Considerações finais
Uma intensa movimentação da sociedade civil atua juntamente a instâncias estatais, num trabalho que já completa 35 anos. À revelia desses esforços, porém, a cultura da alimentação artificial e do uso da mamadeira persiste a ponto de os problemas causados por esses produtos serem ignorados por grande parte da sociedade.
Temos como princípio confiar no produto industrial. Até que se prove o contrário. Para se provar o contrário, vítimas e notícias sobre essas vítimas são indispensáveis, seguidas de iniciativas de reação que iniciem uma luta em prol da alteração do produto ou de sua retirada de circulação pela força das leis.
Mas em relatório de maio deste ano, a IBFAN noticiou que todos os países europeus, com exceção de Noruega e Luxemburgo, desceram de categoria na escala que mede o nível de esforços governamentais para proteger a amamentação, falhando em cumprir as exigências mínimas estabelecidas pelo Código Internacional para Comercialização de Substitutos do Leite (www.waba.org.my).


O poder do mercado demonstra estar conseguindo driblar tantos esforços.
Sublinha-se, pois, a relevância do tema em pesquisas, estudos e ações nas áreas de Relações Internacionais, Direito e Design, para além da área da Saúde. Interseções do assunto com o âmbito dos direitos humanos revelam violações, com o tolhimento de muitas populações ao acesso à saúde, ao desenvolvimento e à conseqüente paz social.

Vem ocorrendo também um grande e perigoso equívoco com relação à ajuda humanitária arregimentada pelos meios de comunicação, pelas ONGs e agências doadoras: a ideia de que a administração indiscriminada de leites artificiais por mamadeiras a populações vitimadas por emergências ou concentradas em campos de refugiados contribuirá para salvar vidas. A declaração do Ministro da Saúde do Sri Lanka — país com altas taxas de aleitamento exclusivo — após o tsunami de 2004, fornece eloquente argumento para a campanha da WABA de 2009, “Amamentação: uma resposta vital à emergência”:

Um grande problema foi a distribuição de fórmulas infantis às mães que amamentavam sem o controle adequado por parte dos doadores e ONGs que atuaram emocionalmente, sem base científica, não contemplando os perigos da alimentação artificial em situações de desastre. Ademais, os meios de comunicação pediram ao público ajuda com doações de leites artificiais e mamadeiras. O Ministério da Saúde teve que superar muitos obstáculos para assegurar que as mães continuassem amamentando e não aplicou a insustentável e potencialmente perigosa prática de usar fórmulas infantis (folder da campanha).

Com relação às atuais diretrizes ambientais e de responsabilidade social, o tema desvela uma alta concentração de irregularidades que abafam o fato de a amamentação ser uma resposta pré-existente e eficaz ao desperdício de recursos naturais e um instrumento promissor para a busca política de condições sociais menos excludentes.

Da parte do Design, trabalha-se pelo reconhecimento de que não pode continuar pesando sobre os ombros dos Estados, dos órgãos de controle, das próprias indústrias e setores de comercialização de produtos ou dos meios de comunicação, a responsabilidade integral pelo acesso da sociedade a produtos que prejudicam a integridade humana e a sustentabilidade ambiental. Todo profissional que concebe produtos é participante da rede que os edifica e dissemina no seio da sociedade, e ele não pode permanecer acriticamente isento de responsabilização pelos efeitos de seu trabalho.

Nossa tarefa deve concentrar-se em auxiliar o trabalho de resgate da prática da amamentação e o projeto de meios mais adequados para alimentar bebês nas ocasiões em que o aleitamento não for possível (como o copinho, que permite que a sucção se realize de maneira natural).
Pois, como afirma Paola Antonelli, curadora da exposição “Safe: design takes on risk”, ocorrida em 2005 no MOMA, o desafio que sempre se apresenta à profissão é o de contribuir para tornar as mudanças viáveis, compreensíveis e acessíveis às pessoas, provendo proteção e segurança sem sacrificar a necessidade de inovação e invenção.

Autora: Cristine Nogueira Nunes (Design - PUC-Rio) cristinenogueira13@gmail.com
Orientação: Luiz Antônio Luzio Coelho (Design - PUC-Rio)
Co-orientação: Myrian Sepúlveda dos Santos (Ciências Sociais - UERJ).
Artigo completo: www.aleitamento.com

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os Desafios da Implementação da Atenção Básica em Saúde Mental

Roberto Mardem Soares Farias
Médico e Secretário de Saúde do Município de Sumaré, representou no evento a Diretoria do Conselho dos Secretários Municipais de Saúde-COSEMS


Sou secretário de Saúde, vivi muito essa experiência apresentada pela Carolina Sombini em Campinas e digo que sou um secretário que gosta muito da área de Saúde Mental. Com a Carolina, a Florianita Campos, a Stellamaris Pinheiro, a Susana Robortella, ou eu odiaria a área ou a adoraria. Acabei adorando. E não é só por isso, é porque se trata de fato de uma "área do nosso ponto de vista, nós que não somos especialistas na área de Saúde Mental como gestores “ absolutamente estratégica. Isto é, um bom gestor deveria beber desses conceitos para fazer uma gestão adequada ao seu modelo de assistência.

A área de Saúde Mental é estratégica. Nós, médicos, auxiliares de enfermagem, profissionais de Saúde, enfrentamos no cotidiano, eu diria, de 30% a 40% do que a gente atende. Uma forte questão é a emocional; nos envolvemos de uma maneira bastante forte, bastante intensa, sendo que a nossa formação é fragilíssima, a universidade ainda não sabe lidar com isso.

Acredito que cada vez mais isso vai ser assim, a vida está muito ruim, muito inadequada para as pessoas. Tanto é que cada vez mais aparece a questão da violência, entre outras. E também, fora essa questão da intensidade, do sofrimento mental em nossas vidas, há a questão de como alguns conceitos foram pensados dentro da Saúde Mental. O próprio PSF tem bebido deles: a questão dos Projetos Terapêuticos, do Matriciamento etc.

São conceitos que aprendemos em Saúde Mental (pelo menos em Campinas foi assim) e que têm sido utilizados para construções em outras áreas. Por isso, sinto-me bastante devedor dessa área; daí, gostar bastante disso. Vivemos muito intensamente essa situação em Campinas. Estou na Saúde Pública há 25 anos, 25 anos vivendo a experiência de Campinas e passando por tudo isso que a Carolina descreveu.

Como curiosidade: desde a época em que se começou a falar de Saúde Mental (há 15 anos, em Campinas), briguei muito para que se incluísse Saúde Mental nas unidades. E depois briguei para que a tirassem. O que aconteceu? Eu me lembro de umas histórias fantásticas: tínhamos uma psicóloga na Unidade em que eu era gerente. A agenda dela lotava rapidamente, e com o que a gente chamava de “besteira?. A “besteira” que qualquer um poderia resolver estava colocada na agenda de um profissional com essa competência, com essa capacidade.

Lembro-me de uma mulher cujo cachorrinho morreu e constava lá na agenda da psicóloga: ?ficou triste, porque ele morreu?. Falo sobre essas coisas porque elas estavam lá na agenda dela, quando poderiam estar na agenda de outro profissional. As questões sobre a dificuldade de aprendizado lotavam a agenda, lotavam. Assim, o paciente que, de fato, precisava do apoio de um especialista não entrava no serviço, estava absolutamente impedido de entrar, porque essas coisas tomavam conta da agenda.

Para esta conversa, resolvi pensar mais na questão do NASF, até porque Sumaré foi dos municípios, junto com Amparo, que primeiro criou o NASF no estado de São Paulo. Nosso NASF está funcionando há cinco meses, desde abril.

Eu já havia tido uma experiência em matriciamento em Sumaré e aprendido na fonte de Campinas, o que me ajudou bastante na constituição do NASF. Então, quis refletir sobre o NASF de Sumaré, como ele está atuando etc.

Esse material foi preparado para fazer as oficinas de implantação do NASF. É de cinco ou seis meses atrás, mas estava dando uma olhada, ainda está atual, dá para discutirmos em cima dessas questões.

Entremos nisso: a atribuição do NASF em Sumaré. Por que coloco a atribuição do NASF em Sumaré? Porque ele tem certas diferenças em relação ao que o Ministério propõe, não muitas, mas algumas. Essas diferenças estão relacionadas com o modelo de assistência de Sumaré, que já englobava a questão do matriciamento em Saúde Mental há dois anos, pelo menos, e é óbvio que isso deveria ser incorporado à experiência que estamos implantando. Então, há muitas coisas que são iguais às do Ministério e outras que são diferentes. E é obvio que, quando falo de NASF, vale para todos, inclusive para o psicólogo. Trabalho, no nosso NASF, com o psicólogo como o profissional da Saúde Mental.

Assim, um dos papéis do NASF é contribuir com as equipes, as comunidades e os Conselhos locais de Saúde nos diagnósticos e na definição das principais necessidades de saúde do cidadão de um dado território.

Note-se que o verbo que mais utilizamos é cogerir; contribuir, portanto, já colocando algo, partindo do princípio de que o NASF não faz, não executa nada sozinho. No máximo, o que ele faz é e cogestão, coparticipação, isto é, ele contribui.

Isso significa “proibir”, assim entre aspas, porque não gosto da palavra, mas é quase proibido ao NASF atuar no sentido do fazer, do executar. Ele contribui e participa com as equipes no diagnóstico; então, é feito o diagnóstico e o planejamento das ações a serem executadas com base naquele diagnóstico, cada atendimento conjunto.

Isso é uma discussão que existe sempre: fazer ou não o atendimento? Acreditamos que deve ser feito o atendimento conjunto. Há alguns casos que são muito complexos, muito difíceis, mas dos quais a equipe de Saúde da Família daria conta se houvesse capacitação feita em serviço, na forma de Educação Permanente.

E aceitar essa Educação Permanente para fazer capacitação significa fazer junto com quem sabe mais. Isto é, não entender capacitação no sentido de ensinar a fazer, e sim fazer junto, dizer: “Olha, não é tão complexo como parecia” ou “É complexo sim, mas há saídas”. Então, vamos fazer juntos, fazer as visitas domiciliares junto etc.

(...) Assim, um dos papéis do NASF é contribuir com as equipes, comunidades e Conselhos locais de Saúde nos diagnósticos e na definição das principais necessidades de Saúde do cidadão de um dado território.
Mardem Soares Farias

Alguns profissionais marcam atendimentos com o psicólogo ou com outro profissional do NASF. Não deveria ser assim; eles deveriam estar envolvidos num determinado caso que fosse atendido junto com os profissionais de Saúde da Família. São consultas conjuntas, atendimentos conjuntos. Como eu dizia, não para dar conta da demanda...

Isso soa como: “Ah, eu tenho uma demanda muito grande de Saúde Mental. Então vamos marcar um monte de consultas conjuntas que a gente liquida rapidamente isso?. Não, não existe o objetivo de dar conta da demanda, porque isso é um problema da gestão “ contratar mais profissionais. Não sei como é possível dar conta da demanda, mas atender rápido para dar conta não é um problema do profissional.

Então, destaco a consulta conjunta porque já escutei muito “sempre fizemos junto: fazemos mais rápido, damos conta e a fila acaba”. Mas não deve ser assim; o objetivo é ampliar a capacidade do profissional de atender. Essa é apenas uma forma de Educação Permanente que estamos colocando; ou seja, não é para fazer sempre consulta conjunta.

É importante discutir casos demandados pela equipe ou quando se percebe que dada equipe tem um profissional que apresenta dificuldade com determinada situação em particular: oferta versus demanda. Há uma demanda, temos casos e queremos discuti-los, ou percebe-se que se está cuidando mal disso, se está fazendo mal aquilo, por exemplo: trabalhamos na Saúde, onde utilizamos uma tecnologia que é a do trabalho em grupo. Fico-me perguntando: “onde é que nós, profissionais de Saúde ( talvez exceto o pessoal da Saúde Mental ), aprendemos a trabalhar em grupo?” Vejo cada grupo absurdo, que creio que mais atrapalhe do que ajude... venho observando isso. Às vezes, o profissional monta o grupo com boa vontade e crê dominar a técnica e fazer “direitinho”. O profissional que de fato domina a técnica observa de fora, vê que não é de verdade e coloca isso como oferta: ?Olha, você está colocando isso como uma tecnologia importante, e a gente considera que é mesmo, mas desde que feita adequadamente?. Então, vamos fazer capacitações, discussões, Educação Permanente, trabalho em grupo etc.

Quando esse profissional percebe que a situação está inadequada, faz ofertas ? assim como, em outras vezes, ele próprio é o demandado pela equipe que sente dificuldade e que precisa dele. Não estou falando de psicólogos, estou falando da equipe do NASF como um todo devendo realizar capacitações para quem apresentar dificuldade, participar das realizações de projetos terapêuticos singulares, apoiar as equipes e desenvolver projetos de intervenção no território, quer dizer, estamos colocando uma das riquezas da Saúde da Família, esse olhar para a subjetividade das pessoas. Saúde é isso, é fruto da subjetividade, da cultura, do lazer.

Como se inserir no território? Como é essa inserção territorial? (o termo território não diz respeito à questão geográfica, e sim às relações com as pessoas, com as entidades, com o território geográfico em si, com as pontes etc.). Como lidar com as dificuldades do ir e vir que o território às vezes oferece? O importante é, junto com a equipe, pensar projetos de intervenção que considerem esse território tanto como produtor de Saúde, dependendo de como me relaciono com ele, quanto como entidades que estão ali produzindo a doença, e, então, fazer projetos de território que consigam observar e perceber isso.

É preciso contribuir, apoiar e realizar capacitações profissionais para os atendimentos domiciliares ? não somente para atendimentos na Unidade, mas também nos domicílios. Quando falo em contribuir com os agentes comunitários, destaco a questão do agente, porque ele tem um papel estratégico quando pensamos no território como um elemento importante do planejamento, das ações, da execução. Como o agente vive no território, sua ação é bastante estratégica. E como a Saúde Mental pode ir junto com esse profissional? Não só a Saúde Mental, mas também o NASF. Pensando especificamente na Saúde Mental, a equipe deve contribuir para resolver uma série de problemas que ocorrem naquele território. Temos destacado bastante o agente como uma ferramenta muito importante para construir esses projetos terapêuticos singulares, para trazer a família, para ser um apoio importante nos projetos terapêuticos e assim por diante.

Há também os problemas das questões municipais, com as quais o NASF pode contribuir. Existe uma série de programas municipais, como no caso específico de Sumaré, que às vezes se relacionam com a Saúde Mental, e outras vezes com o fisioterapeuta que está lá (no NASF) etc. Como é que esses programas, quase sempre desenhados a partir do nível central, passam a fazer parte da vida das Unidades?

Da mesma maneira, deve-se contribuir e interagir com as equipes, apoiá-las para trazerem esses programas mais gerais para dentro, para fazerem parte da vida da Unidade. E, no nosso caso, trata-se do combate à violência e ao tabagismo, do incentivo ao movimento do corpo, à prevenção da Aids etc. O NASF pode se envolver e trazer essas questões para dentro das equipes.

É fundamental veicular informações que visem à prevenção e minimização de risco, proteção, vulnerabilidade etc., buscando a produção do autocuidado, conceitos da Saúde Mental que os senhores dominam melhor do que eu, isto é, a ideia de que produzir Saúde significa produzir autonomia ? não tenho a menor dúvida a esse respeito.

Há pontos nesse discurso de trabalhar sempre na perspectiva do autocuidado, da autonomia, de tirar a dependência das pessoas do Sistema de Saúde que às vezes me irritam. Por esses dias, estávamos discutindo e pensando em uma estratégia para trazer o pessoal da zona rural, um PSF de zona rural que cuide aproximadamente de 600 pessoas. Como assim, uma estratégia para trazer essas pessoas para dentro da Unidade de Saúde? Pessoas que moram a um ou dois quilômetros de distância? E por que não pensar em uma estratégia para ir até a casa dessas pessoas? ?Ah, mas é longe.? Para vocês, é longe, mas, para eles, é perto? Como é que isso se inverte? Por que não compram uma bicicletinha para ir à casa das pessoas? É tudo plano, bonitinho.

Pensar em uma estratégia para vincular as pessoas das Unidades é, muitas vezes, desvincular produzindo autonomia, ofertando apoio ao autocuidado. Usar a Unidade é de fato necessário. Mas aí os profissionais brigam com os pacientes quando faltam à Unidade, mas, muitas vezes, quando essas pessoas vêm, por uma necessidade urgente, fecham-lhes a porta: são esses os paradoxos.

Sempre que falo dessa questão, lembro-me de uma história: eu era pediatra e fazia a consulta ?bonitinho?, já faz mais de 20 anos. Havia uma mulher que eu "convidava?, através das consultas agendadas, para ir ao Centro de Saúde todo mês. Ela ia sempre, até que um dia sua filha ficou doente. Com uns sete, oito meses, ela teve uma dor de ouvido muito forte à noite. A mãe chegou no posto de Saúde que eu trabalhava “ muito organizado, muito bonitinho” e me disse: ?Doutor, minha filha está com dor de ouvido, dá para o senhor dar uma olhadinha?”, ao que respondi: “Não, porque cai a qualidade: só “dar uma olhadinha” me impede de fazer uma consulta integral: não vou olhá-la “por inteiro” até porque, se fizer isso, vou roubar o tempo do outro paciente que agendou sua consulta, ou seja, vou invadir o tempo do outro. Não tem jeito”.

Ela me perguntou o que fazer e eu lhe disse para ir ao Mário Gatti. “Mas pegar ônibus com esse sol quente?”, ?Sim, pegar um ônibus e ir lá no Mário Gatti”. Bom, ela foi ao Mário Gatti.

No mês seguinte, ela faltou pela primeira vez à consulta, e eu, como bom pediatra que era, de serviço organizado, fui à casa dela saber o motivo de dona Maria não ter ido ao posto. É óbvio que ela não me respondeu com a maneira educada como vou contar o caso; na verdade, me respondeu com várias pedras nas mãos. Mas, em resumo, ela me disse o seguinte: “A única vez que fui ao serviço sem ter sido convidada por vocês, a única, vocês bateram com a porta na minha cara. Das outras, eu fui a seu convite. Convites esses ela também não usou essa expressão “um tanto quanto absurdos, porque você me convida para pesar a minha filha e a põe em uma balança pouco confiável. Eu prefiro pesá-lo em um açougue”.

Levei um susto, pensei que ela ia me chamar de açougueiro, mas não. Não, porque no açougue já havia uma balança eletrônica, que pesava melhor “do que a balança daquele posto de Saúde caindo aos pedaços”, segundo o complemento dela.

Enfim, quantas vezes ficamos no projeto terapêutico tentando vincular o indivíduo em vez de investir em autonomia? Eu sei o quanto é necessário ter cuidado ao buscar a autonomia das pessoas.

Trabalhávamos com o que chamamos de Apoio à Gestão, o que ajudou muito na implantação do NASF. Nós temos uma equipe de profissionais de Apoio à Saúde da Mulher, Saúde da Criança, do Adulto, Emergência, Educação Permanente etc., que fazem uma ponte rápida entre a Unidade de Saúde e o Nível Central da Gestão, ajudando o gerente e as equipes a resolverem questões assistenciais (e, às vezes, até mesmo de gestão) da Unidade.

Portanto, o NASF também tem essa dificuldade. Em nosso Apoio à Gestão, tínhamos um psicólogo que trabalhava com Apoio à Gestão de Saúde Mental. Como é que esse profissional vai interagir com quem está no NASF? Contávamos com um ginecologista, que fazia o Apoio à Atenção à Saúde da Mulher, e com uma enfermeira, que fazia o Apoio à Atenção à Criança, e havia um pediatra no NASF.

Como se dará a interação entre os profissionais que já fazem o Apoio à Gestão e esses outros que, de alguma forma, também o farão? Essa questão ainda está por se resolver. Por enquanto, vemos conflitos entre esses profissionais, entre aquele que está no NASF e aquele que está no Apoio à Gestão. De qualquer modo, esperamos que o NASF contribua para melhorar inclusive a potência desses apoiadores, interagindo com as equipes e ajudando-as a resolver seus problemas, como, por exemplo, as questões de fluxo de encaminhamento, de auxílio à prevenção, da avaliação de desempenho etc.

Temos, na cidade de Sumaré, o que a chamamos de Avaliação de Desempenho das Equipes de Saúde da Família. As equipes têm vencimento fixo e vencimento variável, que é um plus no salário a partir do alcance de metas, avaliadas a cada quatro meses. Assim, o resultado dessa avaliação da Saúde da Família pode chegar a significar quase 50% do salário do indivíduo. Por exemplo, um enfermeiro recebe R$ 2.900,00 por mês, se não me engano. Ele pode ganhar até 50% a mais, ou seja, cerca de R$ 1.400,00. Isso tem um significado muito importante no salário desses profissionais.

A avaliação deve ser feita cuidadosamente e esperamos do NASF que ele contribua também para fazer o apoio, para participar desse momento. Deve-se levar mais em conta o processo do que o resultado nessa avaliação. Digamos, por exemplo, que a meta seja reduzir o câncer de colo uterino e, para isso, é necessário se fazer um determinado número de citologias, e não se consegue, mas se percebe que existe um esforço, uma estratégia para aquilo etc. Não é o resultado final que importa, e sim o processo, a interação com determinado indicador para finalmente atingi-lo. E como se discute muito essa questão do “processo” e processo envolve subjetividade é importante que quem esteja no cotidiano dessas unidades contribua fortemente para a Avaliação de Desempenho.

Portanto, outro papel do NASF (óbvio que isso não está na Portaria do Ministério) é contribuir com o Apoio Gestão na questão da Avaliação do Desempenho, apoiar as equipes para que superem as fragilidades apontadas pela avaliação. Repetindo: nossa Avaliação de Desempenho não tem a função de castigar as pessoas, mas sim de servir de feedback.

Queremos que se alcancem as metas. Resumindo: “Olha, queremos que vocês alcancem os 100%, senão não vamos pagar”. Como queremos que isso se realize, temos de ajudar as pessoas a superarem a fragilidade. Portanto, um dos papéis do NASF é ajudar as equipes a superar essas fragilidades para que, na próxima avaliação, elas consigam alcançar aquilo que não haviam alcançado na anterior. Isso é muito importante; é um trabalho que consideramos estratégico para o NASF, esse apoio para alcançar desempenho.

O segundo ponto seria “Construindo Políticas Públicas de Educação Comprometidas com os Interesses das Classes Populares”. Na condição de psicólogos escolares, somos sim profissionais da educação, e como tal não podemos pensar na psicologia escolar apenas sob seu próprio ponto de vista, mas fazemos parte de uma totalidade e isso implica necessariamente em políticas públicas de educação e é necessário conhecê-las. Ter posição em relação a elas é uma condição fundamental até para orientar a ação da psicologia escolar que acreditamos.

Destaco a Avaliação de Desempenho, porque tem um papel de gestão muito importante; ela praticamente define quais são as contribuições da Unidade, pensa em tantos e tais indicadores para organizar o trabalho nessa direção.

É necessário que haja uma interação muito grande com esses instrumentos da Avaliação de Desempenho. E dentro do próprio NASF deve-se apoiá-los simultaneamente, trabalhando muitas vezes em parceria. Digo ?muitas vezes? porque às vezes esse trabalho é individual. Isso é um problema sério, pois o NASF é um núcleo.

No princípio, a ideia era trabalhar sempre junto, mas há dificuldades, porque existem muitas especificidades relativas ao trabalho do fisioterapeuta, por exemplo, e colocar um psicólogo junto é artificializar o trabalho deles. Podia-se fazer algo mais importante. Existem as especificidades do pediatra; colocar um psicólogo, um fisioterapeuta para trabalhar junto é artificializar, e é desnecessário, significa gastar recurso público à toa. Então, o NASF não deve trabalhar o tempo inteiro junto. Às vezes, o pediatra trabalha isoladamente, o psicólogo trabalha isoladamente etc. Qual deve ser o percentual de “junto?? Não sabemos, mas uma parte do trabalho deve ser em conjunto e a outra deve ser feita isoladamente.

De qualquer modo, é muito importante que esse apoio mútuo entre as duas equipes aconteça, porque eu tenho cá comigo, como gestor de Unidade de Saúde por muitos anos, que o lugar mais fóbico da gestão é a Unidade Básica, não tenho a menor dúvida disso. Não é o lugar que tem mais responsabilidades, mas é o mais fóbico; assusta mais quando se é responsável e se quer fazer bem feito. Quando não se é o responsável, é um lugar bem tranquilo para trabalhar. Mas, do contrário, é fóbico.

E por quê? Porque se luta contra duas adversidades: a primeira está relacionada a uma gestão ainda bastante deficiente, pouco estruturada, com muita falta de recursos; a segunda é por ele ser subfinanciado, isto é, por mais que o gestor se envolva e queira fazer um bom trabalho, sempre vão faltar recursos.

É possível fazer muita coisa com o que se tem, mas sempre vai faltar muito. Há, ainda, a pressão da demanda, que é muito grande. Isso é muito complicado, como mostrei na história da dona Maria: 60% das vezes que o serviço de Saúde é procurado é quando se tem alguma dor, seja física ou emocional. Ou seja, a procura pelo serviço de Saúde não é “dentro das caixinhas”, como a Carolina colocou; é quando eu sinto dor e a minha dor às vezes não se encaixa dentro da caixinha, ela não é”encaixável”.

Lembro-me de outra história. Estava fazendo um estudo sobre PSF, e o que vemos no Brasil ainda é assim: há dois tipos de PSF (o terceiro, que seria, em minha opinião, o ideal, ainda não existe totalmente): aquele que só trabalha com ações programáticas e o que só faz pronto atendimento. São poucos os que conseguiram mesclar as duas coisas: fazer o pronto-atendimento e atender, com ações programáticas, ao indivíduo que chega espontaneamente.

Uma vez, avaliando esses PSFs que só realizam ações programáticas, percebemos que existe uma clientela interna que adora o PSF e outra que está fora, odeia o PSF. “Está fora”, ou seja, dentro dos pronto-socorros. Fui a um pronto-socorro conhecer quem são esses que estão fora. Havia um velhinho para quem eu perguntei: “Onde o senhor mora? Qual é o PSF da sua área? A que distância mora do PSF?”, e ele respondeu: “300 metros, quase em frente”. “E o que o senhor sente?”, perguntei de volta. “Dor, não sei onde”. “Por que o senhor não foi ao PSF?”. Ele me respondeu exatamente assim: “Doutor, porque eu não sou programável”. Levei um susto. “Como assim?”Não sou programável? “Porque o PSF trabalha com um monte de programa e eu não me encaixei em nenhum; infelizmente eu não tenho asma, infelizmente eu não tenho tuberculose, infelizmente eu não estou grávido”. E foi listando uma série de “infelizmente”; não tinha nada daquilo para poder entrar no PSF. “O que eu tenho?, concluiu, “eles não têm em nenhum programa para me atender?. Mas quando ele falou “eu não sou programável”, eu levei um choque; afinal, ele de fato não era programável.

(...) São poucos os que conseguiram mesclar as duas coisas: fazer o pronto-atendimento e atender, com ações programáticas, ao indivíduo que chega espontaneamente.
Roberto Mardem Soares Farias


Quando se trabalha com essas “caixinhas”, imagina-se que todo mundo cabe em um programa desses. Ou seja, estamos em um PSF de má qualidade.

Como eu estava dizendo, é um espaço extremamente fóbico também para quem chega lá e quer contribuir, quer ajudar etc. Está sendo fóbico para o próprio NASF. Chega-se lá e há a pressão; querem transformar o profissional do NASF em um profissional “multiparalelo”: “Olha a sua agenda, você não vai atender? Como é que é isso? Então, vai deixar tudo para mim?”. “Olha, eu tenho um caso de uma criança com tal problema e eu que tenho que resolver. E você, não ganha para isso?”

Mais um parêntese: em Sumaré, o profissional que vai para o NASF ganha uma espécie de progressão na carreira. Ir para o NASF é um progresso na carreira; não é qualquer um que vai, existe um processo seletivo para participar do NASF, isso nós definimos assim e queremos fazer mais. Definimos o nosso plano de carreira e o NASF, como se diz, é uma escala nessa progressão.

O candidato deve deter perfil, atribuições, cumprir essas atribuições. Então, ele ganha mais: um psicólogo ou um fisioterapeuta do NASF ganha 16% a mais do que aquele que está no CAPS, na Atenção Básica etc.

Por ele ganhar mais, quem está na rede quer exigir mais dele também. Então, é um pouco assim: “Você não trabalha. Só eu que tenho que trabalhar?”. Há essa falta de compreensão em relação ao apoio como trabalho, isto é, “ganha mais do que eu e não trabalha”. Sua agenda está ali esperando. Pesa muito para um fisioterapeuta e para um psicólogo, seja por causa das dores crônicas e então “tem de fazer fisioterapia”, seja para o psicólogo: “Há um monte de crianças na fila esperando”, falo principalmente de criança, porque o CAPS em Sumaré atende exclusivamente aos adultos; não há atendimento infantil.

Daí, a importância de esses profissionais se apoiarem do ponto de vista “terapêutico” (dar o ombro para o outro chorar), mas também participarem dos processos, do que o outro está fazendo. Então, se sou pediatra e estou lidando com uma determinada Unidade, por exemplo, com crianças obesas, que contribuição o fisioterapeuta ou o psicólogo podem me dar para eu lidar melhor com esse grupo? É disso que eu estava falando: apoiar-se mutuamente, trabalhar muitas vezes em parceria, particularmente nos projetos que envolvam múltiplas variáveis, como é o caso da obesidade. Realmente há sempre um pedacinho em cada variável que exige saberes multidisciplinares, e esse pode ser foco de atenção desses profissionais.

Aí entra o psicólogo no NASF: mas por que o psicólogo? Em primeiro lugar, como já foi dito, por se tratar de Saúde Mental, há muitos distúrbios emocionais na população. Como dizia o Caetano, ?de perto ninguém é normal?; então, como é que se lida com esse ?anormal? que encontramos o tempo inteiro batendo em nossas portas? Em função disso, segundo alguns estudos, mais de 30% da demanda de uma determinada Unidade de Saúde está relacionada às questões de Saúde Mental. Em segundo lugar, por aquele outro motivo que eu dizia, de como a Saúde Mental pode contribuir com seus conceitos de matriciação, de projetos terapêuticos singulares etc., para a própria constituição de equipes de Saúde da Família. Daí, a importância do profissional de Saúde Mental no NASF, particularmente, do psicólogo. Até por eu ser médico, penso que o médico tem um grande defeito em sua formação: ele não é formado para cuidar, ele é formado para curar, medicar. Certo?

Do meu ponto de vista, isso é um problema, porque, para trabalhar com essa concepção de autonomia que a Carolina estava colocando da “desmedicalização”, da “não psicologizaçã”, não “psiquiatrização dos problemas cotidianos “, coloca-se um indivíduo cuja formação é exatamente na outra direção. Creio que isso mais atrapalha do que ajuda.

Nós não queremos, portanto, um psiquiatra em nosso NASF. É um espaço da Saúde Mental que estamos deixando nas mãos ou de um terapeuta ocupacional ou de um psicólogo, e não de um psiquiatra. Não é um espaço que abrimos para o psiquiatra, pelo menos não nesse momento. Quem sabe, no futuro.

Sobre o psicólogo, tínhamos dito que ele deve ajudar as equipes a trabalhar com esses grupos que consideramos prioritários, e não com a pessoa cujo cachorrinho morreu e ficou triste. A minha cachorrinha também morreu e eu também fiquei muito triste, mas não entendo que essa clientela seja tão prioritária como os egressos de manicômios, pacientes acompanhados em CAPS, usuários de álcool e drogas, vítimas de violência etc.

Os que estão mais próximos do PSF são aqueles casos menos graves, mas não menos importantes: o deprimido, o poliqueixoso, aquela criança que apresenta distúrbio de comportamento, déficit de aprendizagem etc., pessoas que estão ali na nossa porta e ainda sabemos lidar pouco com isso. Eu diria que não é para “psicologizá-los”, e sim despsicologizá-los.

Por exemplo, quando se trata de um caso de déficit de aprendizagem, por que eu defendo que deve haver uma interação com esse tema? Porque os próprios professores são os primeiros a dizer que a criança é “maluquinha” e, por isso, ela não aprende. E já mandam para nós com esse “encaminhamento para o psicólogo ou psiquiatra”, ou seja, já vem com o diagnóstico carimbado: “Essa criança precisa de um psicólogo”. E o pediatra malformado também acredita nisso, e isso vira um círculo vicioso. Reforça-se para a mãe que o filho dela é de fato um maluquinho que precisa da ajuda desses profissionais.

Esses temas de baixo, esses que eu estou chamando de “outros”, precisam ser tratados mais pela perspectiva de “desmedicalização” e “despsicologização” do que o contrário. Como, então, tratar dessas questões? Por exemplo, os poliqueixosos, como é que o pessoal cuida deles? A dona Maria, que chega ao Centro de Saúde reclamando o tempo inteiro de alguma dor, vai receber, sem dúvida, também um projeto terapêutico.

Partimos do princípio de que o NASF deve contribuir para o cuidado desses casos, é obvio que o papel principal é o do psicólogo, mas não deve ser somente dele, eu estou destacando o psicólogo pelo o fato de ele estar no campo da Saúde Mental. Acho que isso pode ser lido para qualquer outro profissional que faça parte do NASF.

Como fazer? Como se dá esse cotidiano? Qual é a receitinha que todo mundo sempre pede: “O que eu vou fazer lá mesmo?” Se tem uma receita, é o atendimento conjunto (já destaquei isso), é a discussão de casos na reunião da equipe, para a qual deve-se trazer o caso completo: vamos discutir o caso, o que deveria ter sido feito, encaminhar ou não encaminhar. É a supervisão de um caso mais específico, existem casos complexos que exigem mais de uma discussão. Entendo a discussão como algo diferente da supervisão; não sei se se trabalha com esse conceito, de que a discussão é algo mais genérico. Existem casos e há vários desses na Região Sudoeste, por exemplo, em Campinas, como o da mulher que vivia dentro de uma manilha ou de uma mulher que é comida por um rato no meio do lixão no qual morava. São casos muito difíceis e trabalhamos com eles que exigem mais do que uma discussão de caso, como o dessa mulher que mora lá no meio do lixo, que um rato lhe come a perna todos os dias.

A supervisão é o acompanhamento, aquele caso que, de vez em quando, emperra e não se sabe o que fazer: “Olha, estávamos indo bem, mas de repente o projeto parou ali”; isto exige uma reflexão coletiva, para se buscar novas saídas para este caso singular. Há também as capacitações, é um termo mais específico, voltado para um dado tema: “Olha, não sabemos como lidar com o poliqueixoso, não sabemos fazer grupo”. Pode ser realizadas capacitações para a equipe de PSF saber lidar com temas iguais a esses.

Qual deve ser a participação em grupos terapêuticos? Está lá o grupo, por exemplo, de poliqueixosos. É possível participar junto? Sim, é possível participar junto, no próprio grupo. Assim, participa-se, contribui-se e, depois, é feita a análise de como o grupo procedeu.

Qual deve ser a participação em oficinas terapêuticas, seja em relação aos usuários ou à equipe? O que nós chamamos de oficina? Oficina é o que se tem lá na comunidade, festa, Centro de Convivência e assim por diante. Isto é, não se trata do grupo, mas da oficina mesmo, algo mais concreto, uma ação em conjunto com os usuários. É participar dos projetos terapêuticos singulares, contribuindo com a equipe para compreender as questões da subjetividade em casos mais complexos, mesmo os que não são típicos da Saúde Mental.

Então, vamos tirar as opressões e colocar as facilitações; ajudar o profissional a compreender o que oprime e o que facilita a vida das pessoas, como é que elas vão continuar caminhando. Para isso, não é necessário ser da Saúde Mental; eu mesmo posso contribuir, dar a contribuição da Saúde Mental para outros campos que não são típicos da Saúde Mental. Posso contribuir no planejamento e nas execuções de ações e estratégias. Temos de discutir como eu faço projetos para intervir no território, tanto no sentido positivo quanto negativo; intervir trazendo aquilo que é bom para produzir Saúde, tentando afastar aquilo que é ruim, aquilo que produz doença. Posso contribuir no planejamento e nas execuções de ações e estratégias para a abordagem da questão da violência, o abuso de álcool e outras drogas, a redução de danos aos grupos de risco, a mobilização de recursos comunitários para a reabilitação psicossocial, as oficinas comunitárias, a articulação com o Conselho Tutelar, os Alcoólicos Anônimos, a Pastoral e assim por diante.

Não foi fácil chegar a isso: essa nossa oficina foi a primeira. Quando colocamos no papel, parece que está tudo funcionando às mil maravilhas, não é verdade? Existe uma série de resistências e talvez a mais difícil delas tenha sido aquela que se refere ao fato de as equipes contribuírem para que o indivíduo do NASF não faça o atendimento.

O que facilitou muito o trabalho foi o fato de que trabalhávamos com o Apoio Matricial já há algum tempo e não somente na área da Saúde Mental. O fisioterapeuta, por exemplo, já ia às Unidades. Em contrapartida, há resistência por parte das equipes e por parte do profissional individualmente, mesmo daquele que está no NASF, escolhido e selecionado em função de determinado perfil.

Por exemplo, no campo da Fisioterapia, essa discussão está difícil. Não pretendemos ensinar o outro a ser psicólogo, a ser fisioterapeuta, e sim partilhar conhecimentos. Quanto se aprende na área da Pediatria, por exemplo, de como cuidar de criança? Por que não nos outros campos? Em relação à Fisioterapia, gostaríamos de, por exemplo, trabalhar com os velhinhos acamados, formando os chamados cuidadores informais pessoas da comunidade possam contribuir, ajudar a fazer fisioterapia, puxando, esticando as pernas do velhinho. ?Não, não pode; isso é exclusivo da profissão. Isso caracteriza exercício ilegal da profissão; não pode fazer parte da terapia comunitária de vocês?. Ou seja, trata-se de se libertar desse corporativismo sem achar que o outro lhe vai roubar a clientela porque tem clientela sobrando e passar um tanto desses conhecimentos para frente.

Mais uma historinha eu adoro história porque ilustra. Lembro-me de quando eu era pediatra no Centro de Saúde e uma senhora foi me chamar para ver o velhinho dela, que estava na cama e não conseguia andar. “Mas por que a senhora não o traz para o Centro de Saúde?”. E ela: “Porque não tenho como trazer”.

Naquela época, o Centro de Saúde não ia até a casa das pessoas, éramos contratados e dizia-se: “Você não precisa sair do seu consultório.” Então, quantas vezes ouvíamos o paciente falando: “Doutor, dá para ir à minha casa?”, e respondíamos, com a maior convicção, “Não, não dá”. Esse era o nosso contrato: “Se vira, eu cuido direitinho no Centro de Saúde, mas ir até lá, na casa do paciente, não faz parte da minha obrigação”. Mas era preciso cuidar do velhinho; ele estava ruim, mas não dava para trazê-lo. “E o médico clínico, falou com ele?”, perguntei-lhe. “Falou que não vai, que trouxessem ele aqui, que de fato aqui é muito bom, mas...”. E eu: “Mas eu sou pediatra, não tem nada de.... E ela: “Não, mas vamos lá...”.

Eu fui. Como era bonzinho e tinha dificuldade de falar “não”, fui escondido do meu gerente, porque, se ele soubesse, era capaz de me chamar a atenção. Chego lá e vejo um velhinho em uma casa fechada, janela fechada; no lugar, havia só uma lâmpada vermelhinha. Tudo fechado porque ela dizia, literalmente, que se batesse o vento nas costas dele, ele iria piorar, se fosse na frente, não, nas costas é que não podia. São uns conceitos... Não podia bater o vento nas costas.

Eu auscultei aquele velhinho e olha que cardiologia é a minha maior dificuldade, mesmo quando se trata de criança e aquele coração parecia um pandeiro. “Mas ele precisa de um cardiologista”, eu disse, “ele está muito mal”. ?Mas, doutor, ele está perto de morrer; não vou levar a um cardiologista, não tem a menor condição, ele não entra no ônibus, o carro não vem buscar? (não existia SAMU naquela época). Ela disse: “Faça qualquer coisa para melhorar a vida dele, para ele morrer dignamente”. E eu: “A primeira coisa a fazer é abrir essa janela; a segunda é trocar essa lâmpada, colocar uma lâmpada clara. Não tem problema, pode abrir a janela, o vento nas costas não vai fazê-lo piorar. Coloque-o em uma cadeira de rodas, leve-o para sentar lá na frente da casa”.

Falei ainda: “Se ele morrer depois disso, pelo amor de Deus, não me denuncie, eu não entendo nada de velhinhos, não vá falar que o médico esteve aqui, porque eu não entendo nada disso. Estou te ajudando muito mais como leigo do que como profissional de Saúde, esqueça que eu sou um profissional de Saúde”.

Lembro-me que ela mandou fazer uma cadeira de rodas, com um marceneiro que havia perto da casa deles e o colocou em cima. Passou a esticar a perna do velhinho, porque ele estava todo encolhido, fazia tempo que estava naquela cama, encolhidinho e fedia aquele quarto! Colocou o velhinho sentado. Ele viveu mais alguns anos saindo de cadeira de rodas, ouvindo os passarinhos cantarem, vendo as plantas. Um dia morreu.

Uma vez contei essa história para um fisioterapeuta, que me deu a maior bronca. Como assim, por que eu havia esticado a perna do velhinho? Eu não poderia ter feito isso, porque poderia ter rompido aquilo ou aquilo outro?. São loucuras que eu não consigo compreender. Pensei: “Meu Deus do céu, estou morto; agora só falta o profissional me processar lá no Crefito, porque eu dei uma de fisioterapeuta e coloquei o velhinho sentado na cadeira de rodas”. Só para ilustrar o quanto podemos ser egoístas ao não partilhar um conhecimento achando que é algo somente nosso e que não devemos repartir com o outro, com os agentes, como faz o cuidador informal.

Coloco o outro lado da moeda: há resistência por parte das equipes, mas há também no nosso caso, e é muito comum entre os fisioterapeutas não partilharem o conhecimento com outro. Talvez isso seja algo bem marcante no nosso processo de trabalho.

Site: CRP/SP

Saúde Mental no Programa de Saúde da Família

Maria Luiza Santa Cruz
Psicóloga, trabalha na área de Saúde Mental do PSF da Zona Norte do município de São Paulo


Lembro-me que, até pouco tempo, a Saúde não estava municipalizada em São Paulo; então, que Jatene encontrou, como presidente da Fundação Zerbini, uma brecha para realizar o desafio da territorialização em uma grande cidade como São Paulo. Desde então, a gente vem resistindo. Se não tivéssemos produzido coisas interessantes no território, não teríamos sobrevivido tanto tempo assim.

Com todas as tentativas de acabar com o jeito tradicional de trabalhar a Saúde, parece que algo de bom está acontecendo. Sou testemunha disso, porque mudou e muito a minha vida. Também assisti a mudanças na vida de muitas pessoas. Vou contar um pouquinho da minha experiência e da experiência de um território, de um pedacinho de São Paulo.

Aqui eu conto como foi a implantação do processo. O David Capistrano chamou o pessoal para realizar um desafio na área de Saúde Mental e o Lancetti, que foi nosso coordenador, montou duas equipes de Saúde Mental. Quais seriam as nossas tarefas? Compor as equipes nucleares da Saúde da Família e fazer atendimento conjunto, atendimento conjunto no domicílio. Até achei interessante o Roberto Mardem comentar o fato de não haver psiquiatra, porque era proposital não contratar psiquiatra aqui também. Estaríamos, além dos atendimentos, procurando produzir agenciamentos com os recursos da comunidade.

Só para se ter uma ideia, estamos inseridos lá em cima, naquele pedacinho da Zona Norte (Figura 1). Somos uma equipe volante de Saúde Mental. Há duas equipes de Saúde Mental; a outra equipe era no Sudeste e já está com outra configuração. São Brasilândia e Cachoeirinha, cinco triângulos representando a Unidade Básica de Saúde. Somos volantes nas cinco.

Até 2005, eram 22 Equipes de Saúde da Família. Depois tivemos de redistribuir o território entre as Unidades e, agora, somos 28 equipes de Saúde da Família, mas a nossa quantidade de profissionais continua a mesma.

Usávamos, como se usa até hoje, a reunião com a equipe nuclear como ferramenta fundamental para o trabalho da equipe de referência. A equipe de matriciamento provoca a construção dos projetos terapêuticos singulares, os Projetos Terapêuticos Pedagógicos, como o Lancetti os chamava na época da implantação. Na verdade, abrangemos uma população muito complexa e entramos para as equipes para atender prioritariamente os casos mais graves.

Como projeto-piloto, teríamos condição garantida de trabalhar apenas três meses para experimentar o projeto e, depois, se desse certo, daríamos continuidade. Estamos lá há 10 anos.

Deveríamos cuidar dos casos mais graves: drogadição, suicídio, psicose e violência. Entrávamos nos domicílios com a ajuda do agente comunitário e, sem combinar horário com a família, chegávamos de surpresa e reuníamos todos os que ali estivessem.

Não nos responsabilizamos sozinhos, nem a Equipe de Saúde da Família, nem a Saúde Mental, mas vamos tentar uma responsabilização em conjunto também com as outras instituições que atendem às mesmas pessoas, sejam escola, Vara da Infância, Conselho Tutelar etc.

Quais os conceitos que fomos construindo no decorrer desse trabalho e a partir dos quais passamos a trabalhar? Não é muito diferente daquilo que a Carolina, o Roberto, todos contaram aqui, mas eu vou aproveitar e contar o que fomos encontrando no território também.

Entendemos que o paciente, antes de qualquer quadro patológico, é um cidadão. Ele é uma pessoa, tem um nome, um endereço, uma história, uma família, uma origem, coisas a resgatar, a mostrar. Quando tentamos conversar a respeito disso com as famílias, entendemos que não é porque o paciente em questão está apresentando isto ou aquilo que o restante do grupo não é também paciente. O paciente é a família, não é apenas o psicótico ou aquele que está solicitando um atendimento, uma atenção. O que entendemos por família? É todo e qualquer grupo que habite o mesmo espaço.

Eu estava aqui lembrando que houve duas situações muito curiosas, que encontramos no território, de duas famílias diferentes. Uma era a história de que morava dentro da casa um cavalo junto com a família. O cavalo tinha um quarto, tinha um espaço lá e o pai cuidava melhor do cavalo do que dos filhos. À noite, ele acordava, ia ver se o cavalo estava passando frio, se estava com fome, se precisava de água.

Também me lembrei de outra família muito “maluqueta”. Todos ali bebiam, bebiam muito, mas muito mesmo. O pai da família era um motorista aposentado, com muitos anos de aposentadoria. Ele dormia com um facão embaixo do travesseiro, porque era paranoico por conta do álcool; vivia ameaçando todo mundo, era uma violência sem fim.

A casa era própria ? um sobrado de dois andares em ruínas. A casa em ruínas começou a cair, ruir mesmo, desabar. Mas, como eles precisavam de dinheiro, encontraram um jeito de alugar a parte de baixo da casa e moravam na parte de cima. Só que, na parte de baixo, quem estava ali não estava pagando aluguel, porque o marido tinha sido preso e ficara a mulher e as crianças; não podiam ser despejados. Mas ele queria dar um jeito de a mulher ir embora com os filhos. O que ele fez? Como era no sopé do morro e o encanamento do prédio que ficava lá em cima caia por ali, ele furou o esgoto e deixou o esgoto todo cair dentro da casa da mulher. Então, chegávamos pisando nas coisas mais estranhas possíveis ,um cheiro horroroso para subir até a casa do homem. Chegando na casa dele, não tinha nada, era tudo muito precário, tudo rasgado, tudo estragado. Havia o pai, a mãe, a outra filha, com dois filhos pequenos, um de sete anos e o outro de dois anos de idade, e foi por causa dela que fomos. Tinha um cachorrinho que ficava sassaricando por lá e ela disse: “Ah, encontrei esse”. Quando você ia ver, ela tinha guardado o cachorro dentro da geladeira, geladeira vazia, não havia nada dentro da geladeira, mas estava ligada. Tinha ainda uma ratazana na casa, que eu não vi felizmente, mas a agente comunitária contava que era um bicho de estimação da dona da casa, que colocava no ombro e andava com ela.

No dia em que estávamos na casa conversando com a sobrinha de 15 anos, sentada no chão, arrumando as coisinhas dela, a minha parceira sentada na cama de casal onde o homem guardava o facão, sentada bem perto da parede e eu sentada mais para lá... a agente comunitária chamou minha colega: “Fátima, Fátima?” “Calma, Ester, ela está falando, estou ouvindo o que ela está dizendo”. A ratazana estava ali no pé da Fátima. Ainda bem que ela não viu, porque sei lá o que iria acontecer. Enfim, são essas coisas que encontramos, e isto, para nós, é uma família. Quais as relações que eles estabelecem? É isso que fomos lá tentar entender.

Trabalhamos com o conceito de que família é sempre estruturada; porque se vai chamar isso de desestrutura? Não, tem uma estrutura lá que a mantém firme, coesa, forte. Ela não tem a mesma estrutura que a família que eu conheço, que está na minha cabeça, mas existe lá e quanto mais forte é a estrutura, mais difícil de a gente penetrar, mais difícil compreender e até intervir.

A produção de agenciamento, que conecte as pessoas, a capacitação e a invenção devem fazer parte do método. Não saímos da faculdade com tudo isso pronto; vamos ter de criar, porque são situações inusitadas. O David percebeu nesse momento que, além dos PSFs das equipes, tinha de haver um Ambulatório de Especialidades.

Então, ele colocou lá especialistas de Medicina. A Psiquiatria não é especialidade, a Psicologia não é especialidade, mas o são a Cardiologia, Ginecologia, Pneumologia etc., para dar suporte para as Equipes de Saúde da Família. Que suporte seria esse? Eu acho que essa é uma discussão interessante. O ambulatório entraria nas consultas, nas quais o médico de família ou a equipe teriam um olhar mais especializado, mas apenas em algumas consultas, não em todas.

Havia um gerente muito interessante nesse ambulatório, que começou a fazer matriciamento desses especialistas. Começou a oferecer os especialistas para irem semanalmente ou mensalmente para discutir com as Equipes de Saúde da Família, fazer as discussões mais difíceis.

Fora isso, nós tínhamos também, no início do programa, a reunião das cinco Unidades Básicas de Saúde, semanalmente. Nas quartas-feiras, na parte da manhã, reunia-se a metade das cinco Unidades; na parte da tarde, a outra metade. Com isso, tudo a respeito do trabalho era discutido, sejam as dificuldades, as invenções, as criações, as problemáticas, as políticas ? discutia-se tudo: roda de conversa o tempo inteiro.

Passamos, sobrevivemos a todas as eleições. Chegamos em 2001 e a Saúde conseguiu ser municipalizada. Tivemos aqui em São Paulo a reforma administrativa, criaram-se as subprefeituras e, com isto, a coordenadora, que já tinha sido a nossa coordenadora de Saúde na Zona Norte, Lígia Tobias, passou a ser diretora do Distrito de Saúde. Na época, antes de ser Supervisão, era Divisão de Saúde, era Distrito, alguma coisa assim, mas ela era diretora do Distrito de Saúde.

Ela foi ser diretora da Brasilândia; depois, com a junção, ela acabou ficando também como supervisora de Saúde por um tempo e ajudou a instituir o Fórum de Saúde Mental na região, algo muito interessante porque é a partir dele que muitas outras coisas começaram a acontecer nesse território da atual Brasilândia.

Quis falar mais desse território por conta da outra subprefeitura, Casa Verde-Cachoeirinha-Limão, não ter conseguido construir situações como as do território da Freguesia do Ó. A Freguesia do Ó fez um diferencial na vida da gente, no território, apesar dos nossos gerentes, apesar de uma situação delicada: a Saúde Mental e os gerentes das cinco Unidades sempre discutiam a questão de ir para o território além das cinco Unidades de Saúde.

Os gerentes diziam que historicamente com o estado e o município não havia conversa: eu sou de um, eu sou de outro. Eu, pelo menos, não entendo se, como estamos cuidando da Saúde, a Saúde é de todos nós. Como é que não vamos conversar com os demais a respeito das mesmas coisas que vivenciamos?

Com isso, a equipe de Saúde Mental foi para o território. O PSF teve dificuldade, mas a gente foi construindo um jeito de fazer um fórum quinzenal, que acontece desde 2001, itinerante nas Unidades Básicas de Saúde. Aliás, não são só nas Unidades Básicas; já organizamos fórum no Hospital, no Pronto Socorro, em vários lugares. “Vamos rodiziando as Unidades e a Unidade que recepciona coordena o nosso trabalho, coordena a reunião ali, a roda de conversa naquele dia.” Isso dá um formato sempre novo à conversa.
Esse é um processo histórico que começa com a reforma sanitária de Bauru, de Santos. O mesmo pessoal que veio para cá, foi para Campinas e para o Ministério. Aí é que começou a sistematização, pois o Gastão Wagner foi sistematizando também toda essa prática que não conseguimos sistematizar.

Até então o CAPS era Ambulatório de Saúde Mental e passou a ser CAPS. Batalhou para ser CAPS III, mas até hoje não conseguiu.

Houve uma mudança de paradigma: a responsabilidade é da parceria; não sou só eu que vou atender. Está na escola, então vamos construir, juntos, o projeto, seja no hospital psiquiátrico, na Vara, do Conselho Tutelar, no abrigo, não importa. Se o paciente é cadastrado no território, ele é nosso, ele pode ir e voltar quantas vezes quiser das instituições, mas ele é nossa responsabilidade e, assim, vamos tentar construir com todos os setores e profissionais. Para isso, temos de discutir com nosso parceiro, fazer as rodas de conversa com todos que participam da vida daquela pessoa.

Não partimos mais da patologia, e sim do fato de que há uma pessoa ali, um sujeito, uma história. É sobre isso que vamos dialogar, e não sobre a patologia. Deixamos de lado tudo o que entendemos sobre a vida profissional, a formação acadêmica, de certa forma, deixamos tudo isso de lado, porque não é o que mais importa. Importa, sim, aquele caso, onde há potência, o que dá para fazer e construir junto, inclusive com o próprio paciente. Interessa o diagnóstico? Interessa, mas ele pouco nos ajuda.

Temos de entender que situação é aquela e, portanto, como é que podemos intervir. Da hierarquização para a horizontalização. Entendemos que a complexidade está no território e não em outro lugar, sejam “drogaditos”, sejam psicóticos, seja qualquer pessoa, mesmo que seja retirado temporariamente da família, vai ter de voltar para as suas relações sociais. Então, como resolvemos isso nessa situação? Não adianta mandar para o hospital, ele vai ter de voltar. Em que condição ele vai voltar?

(...) Não partimos mais da patologia, e sim do fato de que tem uma pessoa ali, um sujeito, uma história. É sobre isso que vamos dialogar, e não sobre a patologia.
Maria Luiza Santa Cruz

Passamos do modelo de hospital para os recursos territoriais. Que recursos temos para lidar com essa questão aqui, e não lá fora, retirado, isolado, invisível? Podemos entender muito bem de um assunto ou outro, mas, a respeito dessa situação, todos nós temos algo a dizer. Então, o que temos a dizer um para o outro? Acabamos construindo outro conhecimento, que não é meu nem seu, é coletivo. Assim, saímos do isolamento; há a interatividade de várias formas, seja do profissional, seja do paciente.

Estou lembrando-me de um paciente. Os invisíveis que o PSF vai achando... Eu acho que a busca ativa proporciona isso de modo diferente daquela situação em que as pessoas aguardam os pacientes chegar. Havia lá um homem adulto deitado na cama, mergulhado em uma melancolia profunda, já havia mais de ano, e a família não conseguia fazer nada com essa pessoa. Ele ficava deitado exatamente no quarto onde o pai tinha-se enforcado; ali ele permanecia, não levantava por nada. As unhas dele eram enormes, bichinhos rolando na cama inteira, cocô, xixi... A família encontrou uma saída que era fazer um buraco no telhado para a chuva lavar um pouco e para o sol também aquecer de alguma forma. Fazia mais de um ano que essa pessoa estava lá. O agente comunitário encontrou essa situação difícil e delicada e passou a frequentar aquele quarto.

Nesse quarto, foram criadas diversas situações até o ponto em que o paciente conseguiu, por insistência, falar sobre seus delírios e dizia que tinha coisas embaixo da cama. Entramos no delírio dele e fizemos o que ele acreditava ser a saída. Fizemos uma rede, uma corrente, de mãos dadas, e ele dizia que precisava orar, então, oramos também.

Enfim, entramos no delírio dele. Conseguimos medicá-lo e a equipe resolveu fazer um mutirão e dar-lhe um banho. Levaram-no para o chuveiro. Ele estava lá havia mais de um ano largado. O homem reformou a casa e, com isso, deve ter reformado umas tantas outras coisas em sua vida. Ele nunca mais voltou ao quadro? Voltou, claro que voltou, mas não com a mesma intensidade, pois já tinha aprendido a sair da situação. A equipe da Saúde da Família não precisava mais da equipe de referência para ajudá-lo a sair do quadro, quando ele cismava de entrar.

Com isso, fomos aprendendo uma série de coisas, essa coisa de entrar no delírio, entrar na fantasia... Tem um autor, Tobie Nathan, um etnopsiquiatra, que nos ensinou a conversar com o interlocutor invisível. Todos nós temos alguém invisível ao qual nos apegamos na hora dos nossos desesperos: “Ai meu Deus do céu”. Então, entramos no ambiente familiar e vamos conversando a respeito disso: “Foi Deus que mandou você aqui”. “Bom, Deus mandou, mas o que vamos fazer aqui?”

A partir da história desse fórum, começamos a construir uma interação de equipamentos na rede existente (Figura 1), mas também construir rede a partir das pessoas, a partir dos pacientes. Por exemplo, há outro caso bem interessante que foi um dos mais sérios, mais graves que vimos lá até hoje. O rapaz, na adolescência, com uns 17 anos, perdeu a mãe. Ele enlouqueceu e a irmã do pai foi para a casa cuidar do irmão e do sobrinho.

Não se sabe por que o rapaz deu tantas facadas nessa tia, que não faleceu, sobreviveu, mas nunca mais quis voltar e o rapaz surtou. Até uns 28 anos, mais ou menos, ele viveu o tempo inteiro em manicômio. Ficava só no entra e sai. Quando chegamos lá, discutia-se sobre o perfil do CAPS; então, o rapaz não tinha o perfil do CAPS.

Ficamos um tempão discutindo quem tem o perfil para o CAPS, qual era a função do CAPS. E ele não conseguia ir para o CAPS, não ia para lugar algum. Mas a equipe, a dupla de Saúde Mental continuou insistindo nas visitas dessa família, resumida a ele e ao pai, que se referia ao filho o tempo inteiro como: “aquilo”, “olha a herança que a esposa me deixou”.

Em resumo, o trabalho foi o de ajudar esse pai a ser pai desse rapaz, ajudá-lo nessa paternidade, constituir um vínculo de relação de sobrevivência embaixo do mesmo teto. Muito disso conseguimos, porque o pai passou a chamá-lo de filho, “esse é meu filho, eu que tenho de cuidar mesmo”. Só que o pai desenvolveu um câncer e acabou falecendo.

Esse processo foi muito precioso, muito emocionante; cada vez que eu me lembro dele, choro; foram momentos de aproximação do pai com o filho, ambos se falando. O rapaz, que no início parecia um bicho, parecia mesmo um animal andando... e, depois, os dois se falando. O pai já tinha um relacionamento muito bom com uma família da mesma rua e essa família deu um bom suporte no momento da doença do pai.

A relação foi se tornando muito mais forte e essa família disse: ?Nós vamos cuidar do Júnior, pode ficar sossegado que nós vamos cuidar do Júnior?. O pai se preveniu e se preparou para deixar que o Júnior fosse cuidado e ficasse sob a responsabilidade dessa família, na verdade, um casal, com três filhos e um bebê. O Júnior morava na casa deles.

Nas primeiras noites, o Neguinho, que é o pai dessa família, passou a dormir com o Júnior, para ele não dormir sozinho. Na primeira noite, ele falou: ?Pronto, eu vou dormir. Você me tranca??, porque o pai o trancava em um quarto sem janela. ?Não, não vou trancar você; para que vou trancar você? Não tem necessidade, você já sabe se virar, você já é um homem.?. Ele começou a se relacionar com esse homem de maneira muito diferente da forma como se relacionava com o pai. Hoje, todos os integrantes da família o tratam como um membro da família; vão para a pizzaria juntos, para o supermercado fazer compras.

Ele tem ido participar da terapia comunitária, que é outra encrenca na nossa vida, mas uma encrenca até que boa, uma encrenca para nós psicólogos, mas que tem surtido um efeito muito grande e emocionante também. Com isso, queria dizer também que essa família passou a integrar uma rede. E esta rede que se formou no entorno desse homem, que precisa de cuidados, de mais gente em volta dele.

Temos também, desde 2001, o Fórum da Inclusão da Educação com a Saúde. Quando entrou essa nova gestão, a Educação não deixou mais ninguém participar. Mas aí juntamos dois pequenos fóruns que havia e fizemos um grande, que acontece uma vez por mês e no qual nos reunimos para discutir os casos da infância e da adolescência. A partir de 2003, teve início o Fórum Municipal da Infância e da Adolescência, que é onde temos discutido o matriciamento e o NASF.

Gostaria de comentar sobre a terapia comunitária. Tínhamos, desde o início, um médico da Saúde da Família muito resistente à Saúde Mental. Sabia tudo, tudo mesmo, era professor da Santa Casa. Mas estava lá no PSF fazendo o quê?

A gente sempre se perguntava: ?O que acontece? O homem se nega a atender aos casos de SM, o que ele é? De que se trata?? Aconteciam brigas homéricas com o médico, porque ele encaminhava os pacientes para o pronto-socorro. Um belo dia, ele não conseguiu encaminhar um homem que estava tentando-se matar. Não era a primeira vez; essa pessoa já tinha tomado tudo na vida; naquele dia ele já tinha tomado Varsol, querosene, gasolina, detergente.

Ele chamou a Saúde Mental, porque não conseguiu encaminhar o paciente para o pronto-socorro, pois ele se recusou a ir de qualquer jeito e não foi. Foi a brecha: ?Não, nós vamos, você vai junto??, ?Não, eu não vou, isso é trabalho de vocês?, ?Então, nós não vamos?. Ficamos duas horas, contadas no relógio, discutindo com o médico que, para a Saúde Mental, ele tinha de ir junto, porque a Saúde Mental não trabalhava sozinha, mas com a corresponsabilização etc.

O Varsol estava borbulhando; havia esta questão clínica também. Nós estamos falando de uma questão clínica; por que o médico não vai ver? Acabamos indo e foi maravilhoso, porque o homem estava muito mal; toda hora se levantava para vomitar, estava estendido lá no sofá e o médico foi quem se aproximou dele, conversou, examinou. Primeiro, cuidou da parte clínica. Então, fomos para a conversa.

Dá para aguentar o que está acontecendo e a conversa foi rolando e o homem só se referia ao médico. Foi falando da tristeza dele, porque ele estava querendo pôr fim à vida, de como se sentia inútil, e fomos resgatando as possibilidades de vida.

O interessante nessa conversa é que ele se levantou e disse assim, na hora de irmos embora: “Vocês aguardam um pouquinho porque...”, foi um momento de muita tensão, porque, toda vez que ele levantava, eu falava: “Ai, agora ele se mata, é agora”. Era uma conversa pesada, difícil, mas, na última vez, ele falou: “Eu vou buscar uma coisinha lá dentro”. Aí eu pensei: “Ai, o que será que ele vai pegar?”. Ele foi dentro do quarto e trouxe um pacotinho de lâmina de barbear, entregou na mão do médico e disse: “Eu não preciso mais disso; o senhor pode levar embora, porque eu estava aguardando uma oportunidade de as meninas (as meninas eram a tia e a mãe) não estarem em casa para eu usar”.

Ele acabou não se matando. O médico saiu de lá feliz, falando: ?Olha, valeu!?. Esse médico foi quem trouxe a terapia comunitária para a gente. E trouxe outras pessoas que estavam fazendo capacitação para a equipe dele. A nossa coordenadora perguntou: “Por que só para a sua equipe? Nós temos aqui cinco Unidades de Saúde, vamos pegar um de cada equipe de Saúde da Família e conhecer o que é a terapia comunitária”. Conclusão: nós já estamos com mais de 70 terapeutas comunitários formados e em todas as cinco Unidades de Saúde tem terapia comunitária.

A Unidade de Saúde de Penteado entendeu que a terapia comunitária era o local para onde mandar todos e acabou caracterizando-se uma terapia, um grupo de pessoas com problemas, transtornos sérios. Existem bipolar, esquizofrênico, histéricas graves, um monte de gente lá, mas um monte de gente complicada, tentativas de suicídio; há pessoas que já ficaram internadas durante muito tempo.

Havia também um homem que estava sempre internado. Acabou assumindo esse grupo da terapia comunitária como um grupo que o deixava centrado e se transformou em conselheiro do Conselho Gestor na Unidade. Ele tem feito trabalhos sociais bem interessantes e tem trazido gente para a terapia comunitária.

Propostas. Aqui, eu queria dizer que sempre pensamos e investimos nessa forma de trabalhar e pedimos para todos os que conhecem nosso trabalho que incentivem e apoiem a articulação e o trabalho entre parceiros, que invistam na integração dos vários programas criados pelas diferentes Secretarias Municipais destinados à mesma população. Porque é uma loucura: a Secretaria da Saúde faz uma coisa e a da Educação faz outra, e com a mesma população.

Atualmente, existe o médico da escola, que manda para a equipe de Saúde da Família tudo o que pode, o que não pode e mais um pouco, atravessando completamente o trabalho de território. Enfim, quais são possibilidades de diálogo?

O Fórum de Saúde Mental deste ano organizou o 4º Encontro do Trabalhador de Saúde Mental na Brasilândia, tendo por tema “Infância e adolescência, qual o diálogo possível entre as instituições?”. Reuniram-se todos os poderes locais: Saúde, Educação, Vara da Infância, Conselho Tutelar etc. ? todos os que estão nessa área, junto com os trabalhadores, para discutir como podemos dialogar.

Temos os mesmos casos que circulam por todos esses equipamentos, cada um puxando para um lado. Como podemos conversar para ajudar essa família a tomar um rumo com mais qualidade em sua vida? Estamos nesse processo. Todas essas produções têm valido a pena, apesar das forças contrárias que vêm de todos os lados: inclusive dos trabalhadores.

Por isso, eu perguntei: “como os trabalhadores entenderam o matriciamento?” Por volta de 2004, viemos ao CRP contar o que estávamos fazendo no território, porque havia psicólogos reclamando que estavam sendo obrigados a sair de suas Unidades de Saúde para fazer matriciamento. Isso não era verdade. Estávamos tranquilos quanto a isso, apesar de inquietos. E assim continuamos, inquietos contra essas forças retrógradas. Ainda temos medo de muita coisa, nos sentimos um tanto desprotegidos, mas o resultado é surpreendente; vale a pena experimentar, promover a humanização nos trabalhos, promover a discussão e trabalhos baseados na redução de danos, incentivar a capacitação dos profissionais de diferentes níveis de atendimento, investir na integralidade do atendimento.

Em 31 de março de 2007, toda a nossa equipe ( a de saúde bucal e mesmo quem não era da equipe nuclear) estava demitida, de aviso prévio. A prefeitura entendeu que a Zerbini não servia mais e então fomos passados para a SPDM. Tudo porque havia um rombo lá. Mas agora veio à tona o escândalo da SPDM. Acabamos não entendendo muito bem essas coisas. Enfim, estávamos demitidos e berramos muito por isso, e ainda estamos insistindo.

Fomos lá discutir matriciamento. A antiga Secretária de Saúde, a Sra. Orsini, foi verificar quem eram esses loucos que berravam tanto e o que faziam. Repreendeu-nos, mas passamos então a discutir essas coisas com ela. O Edmundo Maia também foi até lá conhecer o trabalho. Essa história do NASF que está aí foi conquistada recentemente. Depois de tudo isso, o Ministério da Saúde convidou-me para ser formadora de um grupo de apoiadores institucionais, dentro da política nacional de Humanização. Quando aceitei, constatei que eram hospitais da região, e disse: ?Bom, mas o que vamos fazer no hospital da região sem a Atenção Básica? Não vamos conversar?

Batalhamos e, fazendo diversas articulações, conseguimos montar um grupo que conta com Hospital e Atenção Básica. Isso é inédito no município: o Município, o Estado e a União conversando no mesmo território.

Estamos investindo nisso. Lá existem três subprefeituras: Perus/Pirituba, FÓ/Brasilândia e Casa Verde/Cachoeirinha/ Limão, e estamos investindo para que o SUS de fato funcione. A meu ver, por meio desse interessante conceito de matriciamento do Gastão, conseguimos sistematizar nosso trabalho, retratando o que fazemos: matriciamento é a construção de momentos relacionais em que se estabelece a troca de saberes entre profissionais de diferentes serviços de atenção envolvidos no cuidado dos usuários. Ele tem por objetivo garantir que as equipes se vinculem aos pacientes e se responsabilizem pelas ações desencadeadas no processo de assistência, garantindo a integralidade da atenção e de todo o sistema de Saúde.

Lembro-me de que, com a privatização da Saúde no município, os nossos médicos foram para os AMAS. Preferem não ser mais generalistas, porque, além da carga horária e do salário diferente, não é necessário ter vínculo. Você atende segundo o protocolo, sem prontuário; faz o que tem de fazer e dispensa o paciente.

Portanto, faltam médicos no PSF. Seria o PSF uma encrenca? Sim. Há coisas importantes? Há. Mas eu acho que vale a pena discutirmos melhor essa história, porque fazer Saúde com essa lógica altera a vida das pessoas, sim. Com os trabalhadores, tivemos de realizar discussões semanais no fórum.

Tivemos Unidades de Saúde sem PSF absolutamente modificadas depois das discussões. Enfim, creio que vale a pena o investimento nas rodas de conversa de fato, envolvendo todos aqueles que estão dispostos a trabalhar com Saúde.

(...) Promover a humanização nos trabalhos, promover a discussão e trabalhos baseados na redução de danos, incentivar a capacitação dos profissionais de diferentes níveis de atendimento, investir na integralidade do atendimento.
Maria Luiza Santa Cruz

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

NOVAS INDIVIDUAÇÕES E UMA NOVA SAÚDE - Emerson Merhy

Fragmentos do II CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESQUIZOANÁLISE E ESQUIZODRAMA - Uberaba
No mundo hoje, há mudanças de dispositivos subjetivos existenciais.Hoje não temos facilidade em dizer em qual momento a produção de capital explora e em qual a reprodução, força o trabalhador se recompor para ser explorado.
Estar implicado no modo de viver opera-se conecções de encontros. Cada lugar é o lugar da grande política.
O campo da saúde, é um campo da prática de produção de cuidado, que liga-se a produção de biopoderes, biopolítica.
A indústria farmacêutica invade o modo de existir do indivíduo, trazendo uma idéia perversa de que ter saúde é um risco de ser doente. “Tome o medicamento para não ter o que você não tem.” Hoje alimento não é mais alimento, é remédio. Você está em risco por que tem saúde... È o processo de subjetivação coletiva transformado em processos vitais. O próprio processo de investimento é desinvestido, desterritorializado. A medicina tem tendência a ser tecnóloga: o especialismo.
O interdisciplinar é paradoxal, prefere o trabalho ENTRE.
A vida em sua produção é resistência, precisamos sustentar a produção de vida. Temos que compor cotidianos de vida, estes são lugares de construção de resistência, mesmo que ninguém saiba. A capacidade que temos de vida, é o que faz-nos sobreviver além.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Possibilidades da comunicação não violenta - Jonas Melman


Em nossos tempos, o aumento da violência se transformou em um problema central para a humanidade. A epidemia de violência é um fenômeno mundial, e prolifera em todos os segmentos sociais. As forças capazes de gerar violência habitam a subjetividade de cada um de nós. Em certas circunstâncias, ninguém está isento de agir com violência.
Diariamente, a mídia expõe as mazelas de nosso mundo. Devemos lembrar que uma parte significativa dessa violência é silenciosa e ocorre no interior de nossos lares, mostrando que ainda reconhecemos que a violência é um instrumento legítimo para superação dos conflitos familiares. Acreditamos e legitimamos a violência, atestando nossa incapacidade de encontrar formas saudáveis para superar os impasses. O poder do mais forte prevalece. Os mais vulneráveis costumam ser as vítimas: crianças, adolescentes, mulheres e idosos.
Há pelo menos cinco mil anos, as estruturas sociais vigentes que norteiam nossas relações econômicas, de família, educação, justiça, convivência com a natureza, cultura e comunhão espiritual estão fundadas numa lógica de dominação.
Como compreender a violência familiar? Como ajudar as famílias que deveriam amar e cuidar do bem-estar de todos os integrantes, mas acabam produzindo tanto sofrimento?
A fixação dessa lógica da dominação se inicia precocemente. Culturas mais violentas tendem a usar a punição e a recompensa como método para a aprendizagem da obediência à ordem estabelecida.
Somos permanentemente avaliados, criticados e julgados pelos responsáveis pela tarefa pedagógica. A noção do certo e do errado, do aceitável e do inaceitável é transmitida sem reflexão. As estruturas sociais lançam mão de sistemas de pensamento e de modalidades de comunicação que se colocam a serviço desse processo de instituir a dominação como modelo hegemônico de relação entre as pessoas. O elogio e a crítica constituem instrumentos essenciais para reforçar certos comportamentos e atitudes.
Nossa mente foi formatada para traduzir o que chamamos de realidade utilizando o julgamento e a crítica. Julgamos uns aos outros sem muita consciência. Num ambiente familiar crítico e exigente, as pessoas não se sentem seguras para expressar seus sentimentos. O medo ocupa um lugar central nos processos educativos voltados à obediência. Pessoas inseguras precisam de proteção, e são facilmente manipuladas. Aprendemos a temer a autoridade, no lugar de respeitá-la.
O psicólogo Marshall Rosemberg desenvolveu a “Comunicação Não Violenta” (CNV) como uma metodologia centrada em ouvir e falar com atenção, respeito, sinceridade e empatia, estimulando um desejo mútuo de dar e receber de forma plena. A CNV procura se afastar do funcionamento mental baseado em críticas e julgamentos, atuando de forma a estimular a compreensão e o respeito mútuo.
O autor sugere que precisamos aprender a nos comunicar expressando nossas necessidades e sentimentos. Uma linguagem projetada para servir à vida e não às autoridades, que contribua para fomentar conexões voltadas ao bem-estar de todos. As necessidades humanas correspondem à vida se manifestando em nós. Os seres humanos compartilham as mesmas necessidades: segurança material e emocional, amor, empatia, diversão, autonomia e busca de um sentido de vida.
Necessidades nunca estão em conflito. As estratégias que escolhemos para alcançar as necessidades é que podem gerar conflitos. Confundimos, com freqüência, necessidades e estratégias. Ter vontade de assistir TV, ir ao cinema ou andar de bicicleta são estratégias para se divertir. Necessidades não fazem alusão a pessoas, ações ou coisas específicas.
Quando contribuímos para atender às necessidades reais de outras pessoas, nos tornamos pessoas mais felizes. Necessidades não atendidas geram mal-estar, raiva e frustração.
É essencial acolher o sofrimento dos familiares para que eles possam encontrar uma maneira mais pacífica de se relacionar. Agressores também precisam de ajuda e de muita empatia para deixar de ser agressores. Segundo os princípios da Cultura da Paz e da CNV, a violência pode ser entendida como expressão trágica da condição humana. Sofrimento, desigualdade, injustiça, desejo de poder sobre o outro geram violência. O ato violento pode ser compreendido como um pedido de ajuda de um ser humano que não consegue expressar a si mesmo de forma mais saudável.
Precisamos aceitar o desafio de traduzir todas as críticas e juízos de valor numa linguagem que revele as necessidades não atendidas. Uma abertura para o diálogo, para ouvir o outro como um legítimo outro, com respeito e apreço. Quando necessidades e sentimentos são compartilhados de forma clara, eles aproximam as pessoas e os grupos em conflito.
Jonas Melman, psiquiatra e psicoterapeuta, mestre pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, é assessor da Área Técnica de Cultura de Paz da Secretaria Municipal da Saúde de SP. E-mail: melman@terra.com.br

http://www.unesp.br/aci/jornal/220/suplec.php

Saúde Mental, Família e Violência – Jonas Melman

Fragmentos do II CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESQUIZOANÁLISE E ESQUIZODRAMA - Uberaba
Quando se pensa em mudar a psiquiatria, fala-se em mudar a função e o objeto. Em um novo modelo de cuidado, exige-se a proposta de olhar profissionalmente os familiares. É um cuidado de uma clínica ampliada para o ambiente externo.
É importante repensar também o fenômeno da violência na Saúde Mental: a violência relacionada à doença mental, a saúde mental relacionada à não-violência, de usuários para com familiares, de familiares para com usuários, de usuários para com profissionais, de profissionais para com usuários.
Os rituais da humanidade legitimam a violência. Ela fere a dignidade humana e faz sofrer. Ela fere quem sofre e quem exerce a violência. Produz transtornos mentais e sofrimento mental.
Aceitar a loucura e a violência é parte do processo de aceitar a vida em sua totalidade.
Os profissionais sentem-se inseguros para cuidar da família e pacientes. O cuidado é mais dirigido aos pacientes que à família. Cuidar de pessoas em situação de violência significa também cuidar de familiares.
Resiliência: teoria que se interessa pelas mudanças das relações afetivas e culturais que podem modificar o funcionamento do ser humano. Corresponde á potência de a pessoa almejar uma virada na vida, uma metamorfose em direção a um projeto de felicidade.
Política pública consistente + relação de cuidado e confiança = movimento de busca de uma nova identidade das pessoas – o seu lugar no mundo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Alegria e Alívio - Emerson Merhy


APS e seus trabalhadores : no olho do furacão antimanicomial . Alegria e Alívio como dispositivos analisadores * §
Emer son Elias Merhy / 2004
Idéias

No seu estudo sobre o trabalho médico no Progr ama de Saúde da Família, em São Paulo, Angela Capozzolo 1 teve a interessante imagem do olho do furacão, para repre s e n t a r o que via na promessa deste Prog ama em ser alternativo e substitutivo ao que chama de modelo médico hegemônico. Considera que este modelo não tem capacidade de oper a r a produç ão da saúde, pois está,antes de tudo, comprometido com os interesses econômicos e corporativos predomina nt e s na sociedade, e não com o mundo das necessidades de saúde dos indivíduos e coletivos.
Sem discorda r da visão crítica que, com a sua promes s a, nos oferta do modelo médico hegemônico, o que me chamou a atenção, e da qual vou pedir algumas coisas emprestadas para a Angela, é a idéia de que: quem promete ser alternativo e substitutivo de um outro modo de produzir ações de saúde, ou mesmo, quem do seu lugar faz uma leitu a crítica das formas
* Gostaria de deixar claro que este texto é um ensaio e é devedor de um trabalho coletivo com os profissionais do Cândido Ferreir a, Campinas , durante o ano 2003, com quem pude vivenciar muita s situações instigantes , não confortáveis, de como é dura a vida dos que apos tam na mudanç a. Sou devedor também de muitas de suas idéias, que,aqui, sistematizo e agrego novos elementos
§ Muitos dos termos que uso, como alívio, cuidar de cuidadores , são devedores de vários outros com quem venho trabalhando. No decorrer do texto cito partes das fontes, outras ficaram tão minha s também que não as localizo, mas as reconheço como de muitos autores .
1 A Angela apresentou este trabalho como sua tese de doutoramento no Curso de Pós em Saúde Coletiva no DMPS/UNICAMP
1
hegemônicas de se construir práticas de saúde; só pode estar no olho do furacão.
Não quero com isso copiar os mesmos sentidos desta representação, mas ela nos ajuda a olhar o que, hoje, a rede de CAPS promete no discurso do movimento antimanicomial e no campo das estratégias para a reforma psiquiát rica, no Brasil.
Quem vem propondo, e me parece com muito acerto, que caminhar na consti tuição de redes subs titutivas ao Manicômio é apostar na construção de CAPS, por semelhança, está em um lugar muito parecido daquele que descrevi atrás do estudo da Angela. Pois, entendo que, nest e sentido, os CAPS promet em fazer a crítica do mundo manicomial e ser lugar de construção das práticas alternativas e subs titutivas.
Reafirmo que as experimentaçõe s de construção dos CAPSs têm sido muito produtivas, para gerar em processos antimanicomiais; e, mais, têm de fato melhor ado a vida de milhares de usuários destes serviços.
Ousaria dizer que dent r e as várias missões que eles comportam,
há algumas que têm mostra do a supurioridade efetiva destes tipos
de equipamentos perante o que a psiquiatria clássica e os manicômios const ruí r am, nestes últimos séculos.
O fato dos CAPS estar em dirigidos, como equipamentos de saúde, para a produç ão de intervenções em saúde mental, que se pautam pelo(a): 2
Direito do usuár io ir e vir
Direito do usuá io desejar o cuidado
Oferta de acolhimento na crise
Atendimento clínico individual e coletivo dos usuários, nas suas
complexas necessidades
Construção de vínculos e referências, para eles e seus “cuidadoresfamiliares” ou equivalentes
Geração de alívios nos demandantes
Produção de lógicas substitutivas em rede
Matriciamento com outras complexidades do sistema de saúde
Geração e oportunização de redes de reabilitação psico- social,inclusivas; os tornam, em termos de finalidades , ao mesmo tempo, dispositivos efetivos de tensão entre novas práticas e velhos “hábitos”, e lugares de melhorias reais na const ruç ão de formas sociais de tratar e cuidar da loucura.
Por isso, estar em no “olho do furacão” antimanicomi al, tornam- os lugares de manifestação dos grandes conflitos e desafios, como venho apontando no decorrer do texto; e ousar dar conta destas missões, gigantescas , é estar aberto a operar no tamanho da sua potência e governa bilidad e, adotando como um dos princípios o de ser um dispositivo para isso, o que implica em produzir novos coletivos para fora de si mesmo.
Neste sentido, estão no olho do furacão e, como tal, os que o estão fabricando devem e podem usufruir das dúvidas e das experimentações , e seria muito interessan e que tornassem isso um elemento positivo, como marcador contra os que possam imaginar que ele já é o lugar das certeza s antimanicomiais.
3
Esta última postura, das certezas , carrega consigo um grande perigo. Estar no olho do furacão é atiçar um inimigo poderoso: o conjunto dos que se constituíram e constituem o mundo, e um mundo, manicomial. Deste modo, ter uma postura de que na constituição dos CAPS devemos seguir modelos fechados ou receitas, é eliminar a interessante multiplicidade deste, e não aproveitar de um fazer coletivo solidário e experimental. Com isso, abre- se o flanco para que aquele inimigo poderoso seja o referencial crítico, fazendo da crítica um lugar da negação e não um campo instigante de cooperç ão, reflexão, auto- análise e ressignificação das práticas; que, antes de tudo, se propõem produzir em novas vidas desejantes , novos sentidos para a inclusividade social, onde antes só se realizava a exclusão e a interdição dos desejos.
Apostar alto deste jeito, é crer na fabricação de novos coletivos de trabalhadores de saúde, no campo da saúde mental, que consigam com o seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos do trabalho em saúde, produzir em mais vida e interditar em a produção da morte manicomial, em qualquer lugar que ela ocorra.
Aqui, estou considerando como marcador nobre, um dos eixos nucleares da reflexão, a noção de que o trabalho no campo da saúde mental - que se dirige para desinterditar a produção do desejo e, ao mesmo tempo, gerar redes inclusivas, na produção de novos sentidos para o viver no âmbito social -, é de alta
complexidade, múltiplo, interdisciplinar , intersetorial e interprofissional; que, em última instância, só vinga se estiver colado a uma “revolução cultural” do imaginário social, dos vários 4 sujeitos e atores sociais, ou seja, se constituir- se, também, como gerador de novas possibilidades anti- hegemônicas de compreender a multiplicidade e o sofrimento humano, dentro de um campo social de inclusividade e cidadanização.
Reforço que este trabalho humano tem que ser portador de capacidade de vivificar modos de existênci as interditados e antiprodutivos, tem que permitir que vida produza vida, implicação última de qualquer trabalho em saúde, enquanto trabalho que opera na sua dimensão tecnológica, centralmente, modos em ato de trabalho vivo, que podem e devem, na minha concepção, adquirir sentido na medida que a sua “alma” seja a produção de um cuidado em saúde dirigido para ganhos de autonomia e de vida dos seus usuários. Para quem a vida, como utilidade, faz muito sentido.
Apostar alto deste jeito é se permitir usufruir de ser lugar do novo e do acontecer em aberto e experimental , é construir um campo de proteção para quem tem que inventar coisas não pensadas e não resolvidas, para quem tem que construir suas caixas de ferramentas , muitas vezes em ato, para quem, sendo cuidador,deve ser cuidado.
Sempre será uma aposta, em boa medida, experimental , construir novos modos tecnológicos e sociais que permitam o nascer , em terreno não fértil da subjetividade aprisionada da loucur a excluída e interditada, de novas possibilidades desejanes , protegidas em redes sociais inclusivas.
5 Por isso, para todos aqueles que estão implicados com estas apostas, imagino, que mesmo que tenhamos pistas sobre como isso foi feito em algum lugar , como algum coletivo já exercitou e realizou isso, devemos nos proteger de tornar estas experiências em paradigmas e receitas, em guias de nossas práticas; e,
sabiamente, considerá- las como pistas, como momentos e lugares para mirarmos , como alimentos para digerirmos e ressignificarmos com os nossos fazeres , com os nossos coletivos reais, nos nosso mundos concretos.
Proponho entrar nesta aposta de modo crítico, solidário, experimental , impedindo que os inimigos sejam os que façam o nosso questionamento. Façamo- lo entre nós, ampliando, desta forma, nossa capacidade de inventar muitas maneiras de ser antimanicomial. Par tamos do princípio de que já sabemos fazer um
monte de coisas e que, também, não sabemos outras tantas, ou mesmo, fazemos coisas que não dão cer to; e, com isso, vamos apostr que é interressante e produtivo construir “escutas” do nosso fazer cotidiano para captar estes ruídos, neste lugar onde se aposta no novo, mas se está diane da permanente tensão entre o
novo e o velho fazer psiquiát rico e/ou seus equivalentes .
Como regra, ao nos depararmos diante de uma tarefa dessa, voltamos nosso olhar imediatamente para aquele que dá o sentido do trabalho em saúde: o usuário e seu mundo de necessidades e possibilidades; e, com correção, saimos a cata de modos de indicar que o nosso agir antimanicomial está produzindo desinterdição de desejos e inclusão. Entretanto, aqui, gostaria de uma outra viagem, pois entendo que um coletivo, que esteja implicado com 6 este tipo de agir, para ter as capacidades que ele exige, necessita estar re- criando em si, de modo constante, mecanismos de reprodução deste coletivo, que lhe garanta enquanto lugar da vida
de seus protagonistas .
Proponho, adiante, olhar para a “máquina desejante” coletivo de trabalhadores de um CAPS, como um lugar que nos estimula a falar do que estou apontando, tanto quanto aquele que
analiticamente pergunta o que estamos fazendo com o usuário com o nosso trabalho em saúde.
Refletindo sobre o cotidiano de uma equipe de CAPS.
Ofertando idéias O meu olhar, que oferto nesta reflexão, vem do lugar de quem neste último ano tem se dedicado a “cuidar” de cuidadores . Termo que peço emprestado para Cinira M. For tuna 2 , que ao estudar o modus operandi de um coletivo de trabalhadores de saúde, em Ribeirão Preto, tratou desta mirada nas suas análises. Pois bem, estou ofertando um olhar deste lugar que venho ocupando junto a alguns coletivos, que operam na saúde mental, em particular na rede de Campinas, vinculado às equipes do Serviço de Saúde
Cândido Fer r ei r a. .
Dentre muitas coisas interessantes e acertos que os trabalhadores realizam, vi e vejo, também, muitas dificuldades dos trabalhadores para entender em e resolver em várias ques tõe s que estão 2 A Cinira apresentou esta temática através da sua tese de doutoramento no Curso de
Pós Graduação da Escola de Enfermagem da USP/RIBEIRÃO PRETO 7 envolvidas no seu exigente cotidiano, no qual se cruzam distintas e importantes intencionalidades . Entre elas, destaco: de um lado,
a existência de um cotidiano fortemente habitado por intensas demandas de cuidado, que usuários, muito múltiplos e, facilmente, em estados de crises, têm sobre a equipe; e, do outro, pela presença marcante de um imaginário do trabalhador , de que o seu agir clínico é suficientemente ampliado e a sua rede de relações
intra e intersetorial, para além da clínica, é suficientement e inclusiva, que com os seus fazere s, o louco não vai ficar nem mais enlouquecido e nem excluído.
Caminhar nestas linhas tem colocado, sobre o ombro dos trabalhadores , “pesos” importantes para o seu agir, e que facilmente geram fazer es árduos, que os fazem experimentar , o tempo todo, sensações tensas e polares, como as de potência e impotência, const ruindo no coletivo de trabalhadores situações bem paradoxais, nas quais cobram de si e do conjunto posicionamentos profissionai s e estados de ânimos muito difíceis de serem mantidos, durante todo o tempo do trabalho; particularmente , para aqueles que ofertam seu trabalho vivo para vivificar o sentido da vida no outro.
Não é por acaso, que muitos trabalhadores , em supervisão, falam,como um lamento, da sua exaustão, da sua tristeza, da sua incapacidade de acolher o outro, o tempo todo, e do seu pavor
diante das crises dos usuários. E, cobram, exatamente de si, o oposto: o de estar sempre em prontidão e apto, o de estar sempre atento e alegre, o de oferta rescuta a todo momento, que se fizer 8
neces s á r io, e o de tomar as crises como eventos positivos e como oportunidades. .
Por estas manifestações serem comum, tão sofridas e dúbias, é que devemos nos abrir para escutá- las. E, neste sentido, é disso que quero tratar , agora. Antes de mais nada, gostaria de propor
que encararemos estas situações como lugares de polarida des não excludentes , e, ao mesmo tempo, estas polarida de s como constitutivas do “olho do furacão”, no qual os CAPS e seus
trabalhadores se enconr am. E, assim, como matérias primas/oportunidades para se pensr , e problematizar , sobre o modo cotidiano como se fabrica, ou se pode fabrica r , CAPSs antimanicômios.
Os paradoxos do cotidiano e o que aprender com eles para pensar a produção dos anti - manicômios
De novo, restrinjo- me ao âmbito dos CAPS, pois poderia tratar da construção de anti-manicômios de uma maneira mais alarga da, oque seria bem pertinente pelo fato do manicomial não ser um lugar, mas uma prática social, cultural, política e ideológica. Entretanto, para efeito do que vem sendo dito, até agora, situar- se
no CAPS, já é muito.
Partindo do princípio de que só produz novos sentidos para o viver quem tem vida para ofertar , vou procurar pensar sobre uma equipe alegre, que não exaure, que atua na crise como oportunidade .
9 Neste momento, um outro empréstimo é útil. Spinoza me ajuda a pensar – de forma bem livre - que a vida em produção, como lugar de expressão do divino que é, se manifesta de várias formas. Que a alegria é uma destas manifestaçõe s das mais interessantes ,porque um corpo alegre está em plena produção de vida, está em expansão. Por isso, tomo este emprést imo, para sugerir que sópode estar implicada com um agir antimanicomial uma equipe de trabalhadores alegres . Ou seja, só um coletivo que possa estar em
plena produção de vida em si e para si, pode ofertar , com o seu fazer, a produção de novos viveres não dados, em outros. Ou, pelo menos, instigá- los a isso.
Tomando a alegria como indicador da luta contra a tristeza e o sofrimento, a que são submet idos todos os coletivos de trabalhadores da saúde, podemos utilizá- lo também como analisador a das suas práticas. Não que, com isso, imagino que o coletivo seria um bando de “penélope s saltitant e s”, mas que penso o quanto na dobr a tristeza/alegria deste coletivo, no seu fazer cotidiano, pode estar alguma s chaves auto- analíticas para remetê-lo a uma discussão de seus proces sos de trabalho e implicações .
Tenho experimentado, isso, com grupos de trabalhadores e me instigado a idéia de que há que se instituir como parte do cotidiano, além das supervisões institucionais e clínicas, arranjos auto- geridos pelos trabalhadores que lhes permitam re- ordenar suas tristezas e sofrimentos, realizando, inclusive, auto- cuidado de si como cuidadores . Arranjos que desloquem, mas os recoloquem, do fazer cotidiano que lhes consome em vida e em ato, como se 10 fosse um ser antropofágico. Situaç ão não difícil de entender em processos de trabalho que se aliment am do trabalho vivo em ato, como qualquer agir em saúde.
Por isso, agrego, sem fundir, a idéia de exaustão ou, melhor, de combustão do trabalhadores da equipe. Aqui, o empréstimo é das linhas de investigação que vêem, no campo da saúde do trabalhador , pensan do o seu “burn out” como expressão de processos de trabalho altame nt e exploradores e alienadores . Isto é, trago como indicador analítico a noção de exaustão do trabalhador , para se agreg r ao de alegria/tristeza, no sentido de que um produtor de novas possibilidades de vida, que para isso consome a sua própria, se não produzí- la o tempo todo, exaur e. Ou seja, provoca combustão total de sua energia vital.
Poder gerar processos , no cotidiano, que exponham estas questões é permitir que o coletivo pense e fale sobre isso; e, assim, atuar sobre a produç ão destas situações e estados. Vejo que os trabalhadores , que procur am caminhar por aí interrogam de modo bem produtivo o seu próprio fazer manicomial, interrogam o que lhes entristecem e exaurem, e com estas interrogação abrem oportunidad s de se re- situar em em relação a novas possibilidades antimanicomiais.
Ofertando imag e n s
Imaginem algum trabalhador relatando em um encont ro da equipe o sentido de não- vida que adquire ao final de cada dia de trabalho e a exaustão que sente; que, quando sai do serviço ou das 11 atividades , sente um alívio enorme, adquire mais oxigênio e respira melhor; que não sente vontade de voltar no dia seguinte.
Imaginem este trabalhador chegando em um CAPS, encontrando dezenas de usuários que irão participar de várias atividades , algumas das quais ele é responsável; e, de repente, um dos seus 20 casos- referEncias entra em uma crise séria, na moradia. Este trabalha dor , para dar conta destas tarefas, vai ter que se
apoiar na equipe, mas vai também ter que atuar , diretamente e , no seu caso- refer ência, vai ter que acolhê- lo na crise. Vai ter que usar de sua clínica, de suas perspicácias, de suas redes de ajuda. Vai ter que gerar intervençõe s singulares e novas redes. Vai ter que, e pode, aproveitar a opor tunida de que a crise permite para ressignificar o Projeto Terapêutico que vem gerindo em relação àquele usuá rio. Pode inclusive descobr i r novas pistas intersetoriais para criar outros sentidos, para vários de seus casos- referência s.
Enfim, vai ter que acolher , escutar , ressignificar , expor- se a vínculos e jogos transferenciais, abri r- se em rede, atuar em linhas de fuga. Vai ter que exercer saberes tecnológicos clínicos, construir redes de encontros entre competências de intervenção, abri r- se para redes intra- saúde, que possam supor t a r e agregar novos agires tecnológicos, inclusive no momento de uma crise que pode se tornar um sério caso de urgência e emergên ci a. Terá que ter rede de supor t e.
Vejam, alguém exaur ido e triste, sem alívio, diante de todas estas demandas e necessidads , como é que vai gerar vida, além de ter
12 que produzir novas e inovador as ações. Este trabalhador , se vier para um grupo que o acolha e se abra para escut á- lo, provavelment e, vai relatar diante disto tudo uma grande sensação de mais exaustão e tristeza. Uma grande sensaç ão de impotência, ou mesmo, vai relatar que só deu conta das tarefas porque não foi antimanicomial, mas sim burocrat a do atendimento. Fez o fluxo de atendimento andar , mas não o domina, nem o compreende . Só tocou o cotidiano. Gerou alívios nos outros.
De fato, muito do que tenho visto, a par tir de momentos muito parecidos, são equipes relatando o seu medo com as crises, com as urgências e emergências , e o mass acre que tem sido, simplesmente , tocar os fluxos de atendimento. Isto tem sido tão significativo, que em uma supe rvisão concr et a alguns trabalhadores chegaram a montar a seguinte imagem, em uma atividade de supervis ão: nós geramos alívios nos out ros, mas não temos nenhum alívio para olhar e repensar o nosso trabalho; não sabemos se estamos ou não sendo um coletivo/dispositivo antimanicômio.
E, aí, o desafio que fiz para a equipe - com a qual pude pensar e sistematizar muito do que tem neste texto -, foi o de imaginar as várias possibilidade s de produção de uma alegria e um alívio, no cotidiano do trabalhador , implicado com um agir antimanicomial,encarando a produção cotidiana dos seus inver sos: a tristeza e a exaustão, para poder criar uma aposta coletiva de desconstruí- las.
Nesta direção, estou suger indo, além dos eixos alegria e combustão, tomar o foco da produção do alívio produtivo13 antimanicomial como uma poderosa arma a favor da construção dos CAPS anti-manicômios.
O que isso pode significar? Como imaginá- lo?
Todo proces so de trabalho que captur a plename n t e o trabalho vivo em ato na produç ão, impede a construção do alívio produtivo pelo trabalhador e a equipe. Dá- lhes grau zero de liberdade para ressignificar em seus atos e inventar em novas possibilidades e sentidos para os seus fazer es produt ivos. Organizar CAPSs, que aliviam os demandantes , sem se construir mecanismos descaptu r a n t e s do trabalho vivo em ato, impede a possibilidade do
trabalho em saúde mental tornar - se um dispostivo de intervenção anti-manicômio. O que coloca, como uma grande tarefa, a construção cotidiana de alívios para o trabalho vivo em ato gerar novos caminhos.
Como fazer, isso?
Sem receitas . Creio que cada coletivo deve problematizar , no seu fazer, a implicação com o agir antimanicomi al e a const rução de tempo real de trabalho, no interior da equipe, dirigindo- o, intencionalmnte, para fabricar novos sentidos para o viver do louco e da loucur a na sociedade, abrindo novas pistas, em cada lugar onde os CAPS são construídos.Mas, é possível produzir alívios produtivos no interior da equipe,
sem negar que uma das missões seja a de gera r alívios nos demand a n t e s ? Será que isso não exige ressignificar o que vimos 14 entendendo como crise/opor tu nida de e const ruç ão de redes de intervençõe s na urgência e emergê n ci a, em saúde mental? É possível abrir mão de apoio em hospitai s gerais? E, onde não existam, os CAPS de “alta complexidade”, para acolher e internar nas crises, resolvem?
Não conheço uma experiê ncia definitiva que dê conta disso, mas conheço bons exemplos que most r am caminhos diver sos. Há aqueles que não abrem mão de supor t e especializado em hospitais gerais, para a urgênci a e emergê nci a, o que me parec e uma das boas idéias; há aqueles que criam serviços próprios na rede de saúde ment al, de uma complexidade distinta para dar conta desta situação; há os que apostam que os CAPS, em si, devem dar conta desta situação; e, assim, por diant e.
Uma equipe de trabalha dor e s dos CAPSs que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofer ta r a não ser exaur i r para gerar alívios nos outros, como o manicômio já fazia e faz. Há que radicalizar o sentimento deste “bom” medo, em relação às crises, no interior das equipes , e há que compr e e n d ê- las como um “dispositivos em rotação”, que ao opera r em geram novas formas de cuidado no seu interior, mas agitam e mobilizam os outros, que compõem a rede de cuidados, neste mesmo sentido.
Creio, que ter uma rede bem articulada ent re serviços de saúde mental (CAPS), serviços próprios de urgênci a e emergência (como os SAMUs e PSs) e equipes locais de saúde, seja essencial para dar respos t a s razoávei s a um dos problema s que mais somam, no
15 imaginário social, a favor da lógica manicomial. Ou seja, enfrentar bem esta situação tem um duplo sentido: de um lado, é uma das chaves para gera r alívio produt ivo nas equipes de CAPS; de um outro, ao gerar alívio nos que convivem com loucos, em crise, diminui a pressão para a segregação e exclusão.
A melhor solução encontrada é aquela que se baseia na rede necessária, que dá conta efetiva dos casos de urgência/ emergência, sem gerar exclusão e segregação; ao revés, gerando oportunidades de intervenções terapêuticas e trabalhos intersetoriais inclusivos. O melhor é a rede, possível no local ou na região, que consiga impedir a manicomi alizaç ão e, ao mesmo, não negue a necessidade de gerar alívios nos familiares (ou equivalentes ) e nos cuidadores .
O que interessa, em última instância, é a oportunidade de operar novos sentidos para a ressignificação das crises, tanto no desencadeamento de projetos terapêuticos, quanto na consrução de um conjunto de atividades , em rede, que tragam o usuário para ampliar suas redes de vinculação, aumentando as chances de produzir contratualização e responsabilização nas relações com os outros.
Apostar na const rução de proces sos de trabalho que produzam cuidados para os usuár ios e cuidados para os cuidador es é vital, neste percurso. Permitem vivificar o trabalho em saúde que aposta na construção da qualificação de vidas.
16 Construir a alegria e o alívio produtivo como dispositivos analisadores é um desafio para aquel es coletivos sociais que operam no “olho do furacão” e se propõem como geradores de anti-manicômios.
Bibl io gr af ia
Ana Marta Lobosque Princípios para uma Clínica Antimanicomial e outros escritos Editora Hucitec São Paulo
Angela Capozzolo No olho do furacão: trabalho médico e o programa de saúde da família Tese de doutor ado Curso de Pós Graduação em Saúde Coletiva Unicamp Campinas
Angelina Harar i e Willians Valentini A reforma psiquiátrica no cotidiano Editora Hucitec São Paulo
Antonio Lancet ti, Gregório Barembli tt et al. SaúdeLoucura 4 Editor a Hucitec São Paulo
Cinira Fortuna Cuidando dos cuidador e s Tese de doutorado Curso de Pós Graduação em Enfermagem EERP- USP Ribeirão Preto
Emerson Elias Merhy A loucur a e a cidade: outros mapas
Publicação do Fórum Mineiro de Saúde Mental Belo Horizont e Gregór io Baremblit et al. SaúdeLoucu r a 5 Editora Hucitec São Paulo
Postado por Jorge Bichuetti - Utopia Ativa
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