quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Saúde Mental no Programa de Saúde da Família

Maria Luiza Santa Cruz
Psicóloga, trabalha na área de Saúde Mental do PSF da Zona Norte do município de São Paulo


Lembro-me que, até pouco tempo, a Saúde não estava municipalizada em São Paulo; então, que Jatene encontrou, como presidente da Fundação Zerbini, uma brecha para realizar o desafio da territorialização em uma grande cidade como São Paulo. Desde então, a gente vem resistindo. Se não tivéssemos produzido coisas interessantes no território, não teríamos sobrevivido tanto tempo assim.

Com todas as tentativas de acabar com o jeito tradicional de trabalhar a Saúde, parece que algo de bom está acontecendo. Sou testemunha disso, porque mudou e muito a minha vida. Também assisti a mudanças na vida de muitas pessoas. Vou contar um pouquinho da minha experiência e da experiência de um território, de um pedacinho de São Paulo.

Aqui eu conto como foi a implantação do processo. O David Capistrano chamou o pessoal para realizar um desafio na área de Saúde Mental e o Lancetti, que foi nosso coordenador, montou duas equipes de Saúde Mental. Quais seriam as nossas tarefas? Compor as equipes nucleares da Saúde da Família e fazer atendimento conjunto, atendimento conjunto no domicílio. Até achei interessante o Roberto Mardem comentar o fato de não haver psiquiatra, porque era proposital não contratar psiquiatra aqui também. Estaríamos, além dos atendimentos, procurando produzir agenciamentos com os recursos da comunidade.

Só para se ter uma ideia, estamos inseridos lá em cima, naquele pedacinho da Zona Norte (Figura 1). Somos uma equipe volante de Saúde Mental. Há duas equipes de Saúde Mental; a outra equipe era no Sudeste e já está com outra configuração. São Brasilândia e Cachoeirinha, cinco triângulos representando a Unidade Básica de Saúde. Somos volantes nas cinco.

Até 2005, eram 22 Equipes de Saúde da Família. Depois tivemos de redistribuir o território entre as Unidades e, agora, somos 28 equipes de Saúde da Família, mas a nossa quantidade de profissionais continua a mesma.

Usávamos, como se usa até hoje, a reunião com a equipe nuclear como ferramenta fundamental para o trabalho da equipe de referência. A equipe de matriciamento provoca a construção dos projetos terapêuticos singulares, os Projetos Terapêuticos Pedagógicos, como o Lancetti os chamava na época da implantação. Na verdade, abrangemos uma população muito complexa e entramos para as equipes para atender prioritariamente os casos mais graves.

Como projeto-piloto, teríamos condição garantida de trabalhar apenas três meses para experimentar o projeto e, depois, se desse certo, daríamos continuidade. Estamos lá há 10 anos.

Deveríamos cuidar dos casos mais graves: drogadição, suicídio, psicose e violência. Entrávamos nos domicílios com a ajuda do agente comunitário e, sem combinar horário com a família, chegávamos de surpresa e reuníamos todos os que ali estivessem.

Não nos responsabilizamos sozinhos, nem a Equipe de Saúde da Família, nem a Saúde Mental, mas vamos tentar uma responsabilização em conjunto também com as outras instituições que atendem às mesmas pessoas, sejam escola, Vara da Infância, Conselho Tutelar etc.

Quais os conceitos que fomos construindo no decorrer desse trabalho e a partir dos quais passamos a trabalhar? Não é muito diferente daquilo que a Carolina, o Roberto, todos contaram aqui, mas eu vou aproveitar e contar o que fomos encontrando no território também.

Entendemos que o paciente, antes de qualquer quadro patológico, é um cidadão. Ele é uma pessoa, tem um nome, um endereço, uma história, uma família, uma origem, coisas a resgatar, a mostrar. Quando tentamos conversar a respeito disso com as famílias, entendemos que não é porque o paciente em questão está apresentando isto ou aquilo que o restante do grupo não é também paciente. O paciente é a família, não é apenas o psicótico ou aquele que está solicitando um atendimento, uma atenção. O que entendemos por família? É todo e qualquer grupo que habite o mesmo espaço.

Eu estava aqui lembrando que houve duas situações muito curiosas, que encontramos no território, de duas famílias diferentes. Uma era a história de que morava dentro da casa um cavalo junto com a família. O cavalo tinha um quarto, tinha um espaço lá e o pai cuidava melhor do cavalo do que dos filhos. À noite, ele acordava, ia ver se o cavalo estava passando frio, se estava com fome, se precisava de água.

Também me lembrei de outra família muito “maluqueta”. Todos ali bebiam, bebiam muito, mas muito mesmo. O pai da família era um motorista aposentado, com muitos anos de aposentadoria. Ele dormia com um facão embaixo do travesseiro, porque era paranoico por conta do álcool; vivia ameaçando todo mundo, era uma violência sem fim.

A casa era própria ? um sobrado de dois andares em ruínas. A casa em ruínas começou a cair, ruir mesmo, desabar. Mas, como eles precisavam de dinheiro, encontraram um jeito de alugar a parte de baixo da casa e moravam na parte de cima. Só que, na parte de baixo, quem estava ali não estava pagando aluguel, porque o marido tinha sido preso e ficara a mulher e as crianças; não podiam ser despejados. Mas ele queria dar um jeito de a mulher ir embora com os filhos. O que ele fez? Como era no sopé do morro e o encanamento do prédio que ficava lá em cima caia por ali, ele furou o esgoto e deixou o esgoto todo cair dentro da casa da mulher. Então, chegávamos pisando nas coisas mais estranhas possíveis ,um cheiro horroroso para subir até a casa do homem. Chegando na casa dele, não tinha nada, era tudo muito precário, tudo rasgado, tudo estragado. Havia o pai, a mãe, a outra filha, com dois filhos pequenos, um de sete anos e o outro de dois anos de idade, e foi por causa dela que fomos. Tinha um cachorrinho que ficava sassaricando por lá e ela disse: “Ah, encontrei esse”. Quando você ia ver, ela tinha guardado o cachorro dentro da geladeira, geladeira vazia, não havia nada dentro da geladeira, mas estava ligada. Tinha ainda uma ratazana na casa, que eu não vi felizmente, mas a agente comunitária contava que era um bicho de estimação da dona da casa, que colocava no ombro e andava com ela.

No dia em que estávamos na casa conversando com a sobrinha de 15 anos, sentada no chão, arrumando as coisinhas dela, a minha parceira sentada na cama de casal onde o homem guardava o facão, sentada bem perto da parede e eu sentada mais para lá... a agente comunitária chamou minha colega: “Fátima, Fátima?” “Calma, Ester, ela está falando, estou ouvindo o que ela está dizendo”. A ratazana estava ali no pé da Fátima. Ainda bem que ela não viu, porque sei lá o que iria acontecer. Enfim, são essas coisas que encontramos, e isto, para nós, é uma família. Quais as relações que eles estabelecem? É isso que fomos lá tentar entender.

Trabalhamos com o conceito de que família é sempre estruturada; porque se vai chamar isso de desestrutura? Não, tem uma estrutura lá que a mantém firme, coesa, forte. Ela não tem a mesma estrutura que a família que eu conheço, que está na minha cabeça, mas existe lá e quanto mais forte é a estrutura, mais difícil de a gente penetrar, mais difícil compreender e até intervir.

A produção de agenciamento, que conecte as pessoas, a capacitação e a invenção devem fazer parte do método. Não saímos da faculdade com tudo isso pronto; vamos ter de criar, porque são situações inusitadas. O David percebeu nesse momento que, além dos PSFs das equipes, tinha de haver um Ambulatório de Especialidades.

Então, ele colocou lá especialistas de Medicina. A Psiquiatria não é especialidade, a Psicologia não é especialidade, mas o são a Cardiologia, Ginecologia, Pneumologia etc., para dar suporte para as Equipes de Saúde da Família. Que suporte seria esse? Eu acho que essa é uma discussão interessante. O ambulatório entraria nas consultas, nas quais o médico de família ou a equipe teriam um olhar mais especializado, mas apenas em algumas consultas, não em todas.

Havia um gerente muito interessante nesse ambulatório, que começou a fazer matriciamento desses especialistas. Começou a oferecer os especialistas para irem semanalmente ou mensalmente para discutir com as Equipes de Saúde da Família, fazer as discussões mais difíceis.

Fora isso, nós tínhamos também, no início do programa, a reunião das cinco Unidades Básicas de Saúde, semanalmente. Nas quartas-feiras, na parte da manhã, reunia-se a metade das cinco Unidades; na parte da tarde, a outra metade. Com isso, tudo a respeito do trabalho era discutido, sejam as dificuldades, as invenções, as criações, as problemáticas, as políticas ? discutia-se tudo: roda de conversa o tempo inteiro.

Passamos, sobrevivemos a todas as eleições. Chegamos em 2001 e a Saúde conseguiu ser municipalizada. Tivemos aqui em São Paulo a reforma administrativa, criaram-se as subprefeituras e, com isto, a coordenadora, que já tinha sido a nossa coordenadora de Saúde na Zona Norte, Lígia Tobias, passou a ser diretora do Distrito de Saúde. Na época, antes de ser Supervisão, era Divisão de Saúde, era Distrito, alguma coisa assim, mas ela era diretora do Distrito de Saúde.

Ela foi ser diretora da Brasilândia; depois, com a junção, ela acabou ficando também como supervisora de Saúde por um tempo e ajudou a instituir o Fórum de Saúde Mental na região, algo muito interessante porque é a partir dele que muitas outras coisas começaram a acontecer nesse território da atual Brasilândia.

Quis falar mais desse território por conta da outra subprefeitura, Casa Verde-Cachoeirinha-Limão, não ter conseguido construir situações como as do território da Freguesia do Ó. A Freguesia do Ó fez um diferencial na vida da gente, no território, apesar dos nossos gerentes, apesar de uma situação delicada: a Saúde Mental e os gerentes das cinco Unidades sempre discutiam a questão de ir para o território além das cinco Unidades de Saúde.

Os gerentes diziam que historicamente com o estado e o município não havia conversa: eu sou de um, eu sou de outro. Eu, pelo menos, não entendo se, como estamos cuidando da Saúde, a Saúde é de todos nós. Como é que não vamos conversar com os demais a respeito das mesmas coisas que vivenciamos?

Com isso, a equipe de Saúde Mental foi para o território. O PSF teve dificuldade, mas a gente foi construindo um jeito de fazer um fórum quinzenal, que acontece desde 2001, itinerante nas Unidades Básicas de Saúde. Aliás, não são só nas Unidades Básicas; já organizamos fórum no Hospital, no Pronto Socorro, em vários lugares. “Vamos rodiziando as Unidades e a Unidade que recepciona coordena o nosso trabalho, coordena a reunião ali, a roda de conversa naquele dia.” Isso dá um formato sempre novo à conversa.
Esse é um processo histórico que começa com a reforma sanitária de Bauru, de Santos. O mesmo pessoal que veio para cá, foi para Campinas e para o Ministério. Aí é que começou a sistematização, pois o Gastão Wagner foi sistematizando também toda essa prática que não conseguimos sistematizar.

Até então o CAPS era Ambulatório de Saúde Mental e passou a ser CAPS. Batalhou para ser CAPS III, mas até hoje não conseguiu.

Houve uma mudança de paradigma: a responsabilidade é da parceria; não sou só eu que vou atender. Está na escola, então vamos construir, juntos, o projeto, seja no hospital psiquiátrico, na Vara, do Conselho Tutelar, no abrigo, não importa. Se o paciente é cadastrado no território, ele é nosso, ele pode ir e voltar quantas vezes quiser das instituições, mas ele é nossa responsabilidade e, assim, vamos tentar construir com todos os setores e profissionais. Para isso, temos de discutir com nosso parceiro, fazer as rodas de conversa com todos que participam da vida daquela pessoa.

Não partimos mais da patologia, e sim do fato de que há uma pessoa ali, um sujeito, uma história. É sobre isso que vamos dialogar, e não sobre a patologia. Deixamos de lado tudo o que entendemos sobre a vida profissional, a formação acadêmica, de certa forma, deixamos tudo isso de lado, porque não é o que mais importa. Importa, sim, aquele caso, onde há potência, o que dá para fazer e construir junto, inclusive com o próprio paciente. Interessa o diagnóstico? Interessa, mas ele pouco nos ajuda.

Temos de entender que situação é aquela e, portanto, como é que podemos intervir. Da hierarquização para a horizontalização. Entendemos que a complexidade está no território e não em outro lugar, sejam “drogaditos”, sejam psicóticos, seja qualquer pessoa, mesmo que seja retirado temporariamente da família, vai ter de voltar para as suas relações sociais. Então, como resolvemos isso nessa situação? Não adianta mandar para o hospital, ele vai ter de voltar. Em que condição ele vai voltar?

(...) Não partimos mais da patologia, e sim do fato de que tem uma pessoa ali, um sujeito, uma história. É sobre isso que vamos dialogar, e não sobre a patologia.
Maria Luiza Santa Cruz

Passamos do modelo de hospital para os recursos territoriais. Que recursos temos para lidar com essa questão aqui, e não lá fora, retirado, isolado, invisível? Podemos entender muito bem de um assunto ou outro, mas, a respeito dessa situação, todos nós temos algo a dizer. Então, o que temos a dizer um para o outro? Acabamos construindo outro conhecimento, que não é meu nem seu, é coletivo. Assim, saímos do isolamento; há a interatividade de várias formas, seja do profissional, seja do paciente.

Estou lembrando-me de um paciente. Os invisíveis que o PSF vai achando... Eu acho que a busca ativa proporciona isso de modo diferente daquela situação em que as pessoas aguardam os pacientes chegar. Havia lá um homem adulto deitado na cama, mergulhado em uma melancolia profunda, já havia mais de ano, e a família não conseguia fazer nada com essa pessoa. Ele ficava deitado exatamente no quarto onde o pai tinha-se enforcado; ali ele permanecia, não levantava por nada. As unhas dele eram enormes, bichinhos rolando na cama inteira, cocô, xixi... A família encontrou uma saída que era fazer um buraco no telhado para a chuva lavar um pouco e para o sol também aquecer de alguma forma. Fazia mais de um ano que essa pessoa estava lá. O agente comunitário encontrou essa situação difícil e delicada e passou a frequentar aquele quarto.

Nesse quarto, foram criadas diversas situações até o ponto em que o paciente conseguiu, por insistência, falar sobre seus delírios e dizia que tinha coisas embaixo da cama. Entramos no delírio dele e fizemos o que ele acreditava ser a saída. Fizemos uma rede, uma corrente, de mãos dadas, e ele dizia que precisava orar, então, oramos também.

Enfim, entramos no delírio dele. Conseguimos medicá-lo e a equipe resolveu fazer um mutirão e dar-lhe um banho. Levaram-no para o chuveiro. Ele estava lá havia mais de um ano largado. O homem reformou a casa e, com isso, deve ter reformado umas tantas outras coisas em sua vida. Ele nunca mais voltou ao quadro? Voltou, claro que voltou, mas não com a mesma intensidade, pois já tinha aprendido a sair da situação. A equipe da Saúde da Família não precisava mais da equipe de referência para ajudá-lo a sair do quadro, quando ele cismava de entrar.

Com isso, fomos aprendendo uma série de coisas, essa coisa de entrar no delírio, entrar na fantasia... Tem um autor, Tobie Nathan, um etnopsiquiatra, que nos ensinou a conversar com o interlocutor invisível. Todos nós temos alguém invisível ao qual nos apegamos na hora dos nossos desesperos: “Ai meu Deus do céu”. Então, entramos no ambiente familiar e vamos conversando a respeito disso: “Foi Deus que mandou você aqui”. “Bom, Deus mandou, mas o que vamos fazer aqui?”

A partir da história desse fórum, começamos a construir uma interação de equipamentos na rede existente (Figura 1), mas também construir rede a partir das pessoas, a partir dos pacientes. Por exemplo, há outro caso bem interessante que foi um dos mais sérios, mais graves que vimos lá até hoje. O rapaz, na adolescência, com uns 17 anos, perdeu a mãe. Ele enlouqueceu e a irmã do pai foi para a casa cuidar do irmão e do sobrinho.

Não se sabe por que o rapaz deu tantas facadas nessa tia, que não faleceu, sobreviveu, mas nunca mais quis voltar e o rapaz surtou. Até uns 28 anos, mais ou menos, ele viveu o tempo inteiro em manicômio. Ficava só no entra e sai. Quando chegamos lá, discutia-se sobre o perfil do CAPS; então, o rapaz não tinha o perfil do CAPS.

Ficamos um tempão discutindo quem tem o perfil para o CAPS, qual era a função do CAPS. E ele não conseguia ir para o CAPS, não ia para lugar algum. Mas a equipe, a dupla de Saúde Mental continuou insistindo nas visitas dessa família, resumida a ele e ao pai, que se referia ao filho o tempo inteiro como: “aquilo”, “olha a herança que a esposa me deixou”.

Em resumo, o trabalho foi o de ajudar esse pai a ser pai desse rapaz, ajudá-lo nessa paternidade, constituir um vínculo de relação de sobrevivência embaixo do mesmo teto. Muito disso conseguimos, porque o pai passou a chamá-lo de filho, “esse é meu filho, eu que tenho de cuidar mesmo”. Só que o pai desenvolveu um câncer e acabou falecendo.

Esse processo foi muito precioso, muito emocionante; cada vez que eu me lembro dele, choro; foram momentos de aproximação do pai com o filho, ambos se falando. O rapaz, que no início parecia um bicho, parecia mesmo um animal andando... e, depois, os dois se falando. O pai já tinha um relacionamento muito bom com uma família da mesma rua e essa família deu um bom suporte no momento da doença do pai.

A relação foi se tornando muito mais forte e essa família disse: ?Nós vamos cuidar do Júnior, pode ficar sossegado que nós vamos cuidar do Júnior?. O pai se preveniu e se preparou para deixar que o Júnior fosse cuidado e ficasse sob a responsabilidade dessa família, na verdade, um casal, com três filhos e um bebê. O Júnior morava na casa deles.

Nas primeiras noites, o Neguinho, que é o pai dessa família, passou a dormir com o Júnior, para ele não dormir sozinho. Na primeira noite, ele falou: ?Pronto, eu vou dormir. Você me tranca??, porque o pai o trancava em um quarto sem janela. ?Não, não vou trancar você; para que vou trancar você? Não tem necessidade, você já sabe se virar, você já é um homem.?. Ele começou a se relacionar com esse homem de maneira muito diferente da forma como se relacionava com o pai. Hoje, todos os integrantes da família o tratam como um membro da família; vão para a pizzaria juntos, para o supermercado fazer compras.

Ele tem ido participar da terapia comunitária, que é outra encrenca na nossa vida, mas uma encrenca até que boa, uma encrenca para nós psicólogos, mas que tem surtido um efeito muito grande e emocionante também. Com isso, queria dizer também que essa família passou a integrar uma rede. E esta rede que se formou no entorno desse homem, que precisa de cuidados, de mais gente em volta dele.

Temos também, desde 2001, o Fórum da Inclusão da Educação com a Saúde. Quando entrou essa nova gestão, a Educação não deixou mais ninguém participar. Mas aí juntamos dois pequenos fóruns que havia e fizemos um grande, que acontece uma vez por mês e no qual nos reunimos para discutir os casos da infância e da adolescência. A partir de 2003, teve início o Fórum Municipal da Infância e da Adolescência, que é onde temos discutido o matriciamento e o NASF.

Gostaria de comentar sobre a terapia comunitária. Tínhamos, desde o início, um médico da Saúde da Família muito resistente à Saúde Mental. Sabia tudo, tudo mesmo, era professor da Santa Casa. Mas estava lá no PSF fazendo o quê?

A gente sempre se perguntava: ?O que acontece? O homem se nega a atender aos casos de SM, o que ele é? De que se trata?? Aconteciam brigas homéricas com o médico, porque ele encaminhava os pacientes para o pronto-socorro. Um belo dia, ele não conseguiu encaminhar um homem que estava tentando-se matar. Não era a primeira vez; essa pessoa já tinha tomado tudo na vida; naquele dia ele já tinha tomado Varsol, querosene, gasolina, detergente.

Ele chamou a Saúde Mental, porque não conseguiu encaminhar o paciente para o pronto-socorro, pois ele se recusou a ir de qualquer jeito e não foi. Foi a brecha: ?Não, nós vamos, você vai junto??, ?Não, eu não vou, isso é trabalho de vocês?, ?Então, nós não vamos?. Ficamos duas horas, contadas no relógio, discutindo com o médico que, para a Saúde Mental, ele tinha de ir junto, porque a Saúde Mental não trabalhava sozinha, mas com a corresponsabilização etc.

O Varsol estava borbulhando; havia esta questão clínica também. Nós estamos falando de uma questão clínica; por que o médico não vai ver? Acabamos indo e foi maravilhoso, porque o homem estava muito mal; toda hora se levantava para vomitar, estava estendido lá no sofá e o médico foi quem se aproximou dele, conversou, examinou. Primeiro, cuidou da parte clínica. Então, fomos para a conversa.

Dá para aguentar o que está acontecendo e a conversa foi rolando e o homem só se referia ao médico. Foi falando da tristeza dele, porque ele estava querendo pôr fim à vida, de como se sentia inútil, e fomos resgatando as possibilidades de vida.

O interessante nessa conversa é que ele se levantou e disse assim, na hora de irmos embora: “Vocês aguardam um pouquinho porque...”, foi um momento de muita tensão, porque, toda vez que ele levantava, eu falava: “Ai, agora ele se mata, é agora”. Era uma conversa pesada, difícil, mas, na última vez, ele falou: “Eu vou buscar uma coisinha lá dentro”. Aí eu pensei: “Ai, o que será que ele vai pegar?”. Ele foi dentro do quarto e trouxe um pacotinho de lâmina de barbear, entregou na mão do médico e disse: “Eu não preciso mais disso; o senhor pode levar embora, porque eu estava aguardando uma oportunidade de as meninas (as meninas eram a tia e a mãe) não estarem em casa para eu usar”.

Ele acabou não se matando. O médico saiu de lá feliz, falando: ?Olha, valeu!?. Esse médico foi quem trouxe a terapia comunitária para a gente. E trouxe outras pessoas que estavam fazendo capacitação para a equipe dele. A nossa coordenadora perguntou: “Por que só para a sua equipe? Nós temos aqui cinco Unidades de Saúde, vamos pegar um de cada equipe de Saúde da Família e conhecer o que é a terapia comunitária”. Conclusão: nós já estamos com mais de 70 terapeutas comunitários formados e em todas as cinco Unidades de Saúde tem terapia comunitária.

A Unidade de Saúde de Penteado entendeu que a terapia comunitária era o local para onde mandar todos e acabou caracterizando-se uma terapia, um grupo de pessoas com problemas, transtornos sérios. Existem bipolar, esquizofrênico, histéricas graves, um monte de gente lá, mas um monte de gente complicada, tentativas de suicídio; há pessoas que já ficaram internadas durante muito tempo.

Havia também um homem que estava sempre internado. Acabou assumindo esse grupo da terapia comunitária como um grupo que o deixava centrado e se transformou em conselheiro do Conselho Gestor na Unidade. Ele tem feito trabalhos sociais bem interessantes e tem trazido gente para a terapia comunitária.

Propostas. Aqui, eu queria dizer que sempre pensamos e investimos nessa forma de trabalhar e pedimos para todos os que conhecem nosso trabalho que incentivem e apoiem a articulação e o trabalho entre parceiros, que invistam na integração dos vários programas criados pelas diferentes Secretarias Municipais destinados à mesma população. Porque é uma loucura: a Secretaria da Saúde faz uma coisa e a da Educação faz outra, e com a mesma população.

Atualmente, existe o médico da escola, que manda para a equipe de Saúde da Família tudo o que pode, o que não pode e mais um pouco, atravessando completamente o trabalho de território. Enfim, quais são possibilidades de diálogo?

O Fórum de Saúde Mental deste ano organizou o 4º Encontro do Trabalhador de Saúde Mental na Brasilândia, tendo por tema “Infância e adolescência, qual o diálogo possível entre as instituições?”. Reuniram-se todos os poderes locais: Saúde, Educação, Vara da Infância, Conselho Tutelar etc. ? todos os que estão nessa área, junto com os trabalhadores, para discutir como podemos dialogar.

Temos os mesmos casos que circulam por todos esses equipamentos, cada um puxando para um lado. Como podemos conversar para ajudar essa família a tomar um rumo com mais qualidade em sua vida? Estamos nesse processo. Todas essas produções têm valido a pena, apesar das forças contrárias que vêm de todos os lados: inclusive dos trabalhadores.

Por isso, eu perguntei: “como os trabalhadores entenderam o matriciamento?” Por volta de 2004, viemos ao CRP contar o que estávamos fazendo no território, porque havia psicólogos reclamando que estavam sendo obrigados a sair de suas Unidades de Saúde para fazer matriciamento. Isso não era verdade. Estávamos tranquilos quanto a isso, apesar de inquietos. E assim continuamos, inquietos contra essas forças retrógradas. Ainda temos medo de muita coisa, nos sentimos um tanto desprotegidos, mas o resultado é surpreendente; vale a pena experimentar, promover a humanização nos trabalhos, promover a discussão e trabalhos baseados na redução de danos, incentivar a capacitação dos profissionais de diferentes níveis de atendimento, investir na integralidade do atendimento.

Em 31 de março de 2007, toda a nossa equipe ( a de saúde bucal e mesmo quem não era da equipe nuclear) estava demitida, de aviso prévio. A prefeitura entendeu que a Zerbini não servia mais e então fomos passados para a SPDM. Tudo porque havia um rombo lá. Mas agora veio à tona o escândalo da SPDM. Acabamos não entendendo muito bem essas coisas. Enfim, estávamos demitidos e berramos muito por isso, e ainda estamos insistindo.

Fomos lá discutir matriciamento. A antiga Secretária de Saúde, a Sra. Orsini, foi verificar quem eram esses loucos que berravam tanto e o que faziam. Repreendeu-nos, mas passamos então a discutir essas coisas com ela. O Edmundo Maia também foi até lá conhecer o trabalho. Essa história do NASF que está aí foi conquistada recentemente. Depois de tudo isso, o Ministério da Saúde convidou-me para ser formadora de um grupo de apoiadores institucionais, dentro da política nacional de Humanização. Quando aceitei, constatei que eram hospitais da região, e disse: ?Bom, mas o que vamos fazer no hospital da região sem a Atenção Básica? Não vamos conversar?

Batalhamos e, fazendo diversas articulações, conseguimos montar um grupo que conta com Hospital e Atenção Básica. Isso é inédito no município: o Município, o Estado e a União conversando no mesmo território.

Estamos investindo nisso. Lá existem três subprefeituras: Perus/Pirituba, FÓ/Brasilândia e Casa Verde/Cachoeirinha/ Limão, e estamos investindo para que o SUS de fato funcione. A meu ver, por meio desse interessante conceito de matriciamento do Gastão, conseguimos sistematizar nosso trabalho, retratando o que fazemos: matriciamento é a construção de momentos relacionais em que se estabelece a troca de saberes entre profissionais de diferentes serviços de atenção envolvidos no cuidado dos usuários. Ele tem por objetivo garantir que as equipes se vinculem aos pacientes e se responsabilizem pelas ações desencadeadas no processo de assistência, garantindo a integralidade da atenção e de todo o sistema de Saúde.

Lembro-me de que, com a privatização da Saúde no município, os nossos médicos foram para os AMAS. Preferem não ser mais generalistas, porque, além da carga horária e do salário diferente, não é necessário ter vínculo. Você atende segundo o protocolo, sem prontuário; faz o que tem de fazer e dispensa o paciente.

Portanto, faltam médicos no PSF. Seria o PSF uma encrenca? Sim. Há coisas importantes? Há. Mas eu acho que vale a pena discutirmos melhor essa história, porque fazer Saúde com essa lógica altera a vida das pessoas, sim. Com os trabalhadores, tivemos de realizar discussões semanais no fórum.

Tivemos Unidades de Saúde sem PSF absolutamente modificadas depois das discussões. Enfim, creio que vale a pena o investimento nas rodas de conversa de fato, envolvendo todos aqueles que estão dispostos a trabalhar com Saúde.

(...) Promover a humanização nos trabalhos, promover a discussão e trabalhos baseados na redução de danos, incentivar a capacitação dos profissionais de diferentes níveis de atendimento, investir na integralidade do atendimento.
Maria Luiza Santa Cruz

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