terça-feira, 14 de abril de 2009

"Antidepressivos, Graças a Deus"

“Muito prazer, sou uma F34.1”. Assim a jornalista Catia Moraes, autora de Eu tomo antidepressivo, graças a Deus! (Record) manifestou o alívio que sentiu ao encontrar, na lista de sintomas elaborada pela CID-10, (Classificação Internacional de Doenças da OMS) a descrição dos transtornos de humor que “explicavam” sua depressão. A frase não é tão irônica quanto parece. A depressão, que muitos analistas e sociólogos consideram o sintoma mais expressivo das contradições sociais do século XXI, tornou-se, com o aval da ciência, uma prótese de identidade para os sujeitos perdidos entre as referências voláteis do mundo contemporâneo. Por isso mesmo, é uma doença com enorme potencial de mercado. Se os deprimidos incomodam por sua inapetência para a grande festa do consumo que anima a vida social no mundo industrializado, seu apetite por novas medicações vem alavancando as vendas da indústria farmacêutica, que crescem cerca de 22% ao ano no país e movimentam anualmente 320 milhões de dólares . Do ponto de vista da psicanálise, a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão. Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência, competência e disponibilidade para a diversão. Observa-se um estranho conluio entre a medicina e a doença: a auto-identificação do deprimido responde às novas estratégias de vendas dos laboratórios farmacêuticos. Folhetos explicativos, editados pelos laboratórios e pelo Ministério da Saúde, alertam para os perigos deste mal insidioso e orientam o leitor a detectar os primeiros sinais da doença, em listas de sintomas tão abrangentes que praticamente qualquer um pode se incluir nela. A propaganda estimula o auto-diagnóstico – a busca do medicamento é mera conseqüência. O livro de Cátia Moraes arremeda esta estratégia. Admito, de boa fé, que a autora não tenha escrito sob encomenda de nenhum fabricante de antidepressivos. Não faz diferença; o livro é uma peça publicitária. Escrito em estilo “pra cima”, recheado de expressões joviais que celebram as delícias da vida monitorada pelos antidepressivos, o livro alterna depoimentos triunfantes de consumidores de remédios com capítulos informativos ao modo dos panfletos dos laboratórios farmacêuticos. A começar pela superficialidade: cinco páginas explicam o que é a neurociência, dez páginas resumem o que são e como agem os antidepressivos, outras seis relatam os milagres da “eletroestimulação”, oito enumeram os “transtornos de humor ou afetivos” – as quais incluem praticamente todas as manifestações de dor psíquica – e por aí vai. O texto todo exala o entusiasmo dos convertidos. Os casos “clínicos” parecem inspirados nas antigas propagandas de fortificantes ou remédios para emagrecer, na base do “eu era assim/fiquei assim”. Como toda boa estratégia publicitária, a argumentação da autora não deixa de contemplar possíveis argumentos críticos. Noblesse oblige, a “psicoterapia” é recomendada como valor agregado ao tratamento medicamentoso, sem qualquer consideração efetiva que relacione a depressão com o conflito inconsciente e o desejo. Para que, afinal? O desenvolvimento de medicamentos cada vez mais especializados, ao reduzir o sujeito a uma somatória de transtornos de comportamento, não só dispensou a psicanálise como tem provocado uma falência teórica no seio da própria psiquiatria, que abandonou a produção de teorias sobre as doenças mentais.
Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de, entre outros, O tempo e o Cão: A Atualidade das Depressões (Boitempo: no prelo).

Nenhum comentário:

Postar um comentário