Indiferença e Silêncio. Talvez tal binômio fosse a melhor resposta ao artigo “Uma Lei Errada”, publicado na Ilustrada da Folha de São Paulo, nesse domingo último, destinando-o à vala comum dos panfletos inconseqüentes. Talvez não valesse a pena responder a uma tal infâmia se o artigo tivesse sido escrito pelo representante de uma confederação qualquer dos hospitais ou dos laboratórios, mas não: estamos lendo um escrito assinado pelo autor do inigualável Poema Sujo, por um dos co-atores do Manifesto Neo-concreto, estamos falando do grande poeta Ferreira Gullar. Urge responder ad hominem, impossível diante dele se calar.
Pois então, vejamos. O autor ali se permite ser duro e ofensivo, talvez sob a pretensão de ser enfático e contundente. Cada palavra é cuidadosamente escolhida para ferir; a difamação é dirigida, sem restrição, ao conjunto dos autores e atores sociais do movimento da luta anti-manicomial. Resume-se a complexidade de um processo difícil, eivado de sucessos e obstáculos ao longo de quase 22 anos, como se ele não mais fosse do que a reação histérica de uma “classe média [que] quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade”. Um deputado petista, citado sem ser nomeado, é acusado de ter declarado que as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles. Lêem-se as aspas, mas não está indicada a fonte dessa declaração, o que deixa o autor mais à vontade para chamá-lo de “cretino”, porque supostamente “não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas” na família e desconhece a dor de um pai que tem quer internar um filho. Sua campanha, portanto, aos olhos do grande poeta, não passa de uma “demagogia como qualquer outra”, fundada em dados falsos ou falsificados. Num retorno ao politicamente correto, ele ainda acrescenta que a escolha do termo manicômio visa produzir uma distorção ideológica do sentido que hoje deveríamos atribuir aos nossos modernos hospitais psiquiátricos.
A difamação é grave, gravíssima, e deve chegar ao conhecimento de grande parte dos leitores dominicais da Folha de São Paulo. Impossível, portanto, manter-se em silêncio. A ética nos impõe um revide rápido. Valendo-nos de uma conhecida tática marcial, que consiste em combater se servindo do próprio movimento do adversário, responderíamos que esse escrito incorre repetidas vezes na irreflexão que ele inadvertidamente atribui aos que até hoje sustentam os princípios e conseqüências da reforma anti-manicomial. Façamos, pois, perguntas diretas, no presente do indicativo, deixando de lado as alusões e os condicionais: O que sabes para afirmar que alguém desconhece a dor de conviver com pessoas esquizofrênicas na família? Não, caro poeta, sofrimento mental na família não é, nem de longe, exclusividade do Sr. Ferreira Gullar. Sabes o quão freqüente e desolador era o abandono de doentes mentais pela família nos hospitais psiquiátricos, sobretudo nos serviços públicos? Podes me citar qual estatística sustenta que o número de doentes mentais abandonado nas ruas, dormindo sob viadutos, aumentou após a reforma anti-manicomial? Não, caro poeta, freqüentar serviços públicos, ao que tudo indica, não é a especialidade do Sr. Ferreira Gullar.
Mas isso não é tudo. O artigo, quem diria, parece ter sido escrito por alguém também versado em psicofarmacologia, cuja rispidez para falar da reforma anti-manicomial só é comparável à suavidade com a qual aborda as medicações neurolépticas, que, segundo ele, “não apresentam qualquer inconveniente”. Sancta simplicita! Já ouvistes falar da discinesia tardia, do parkinsonismo induzido, da acatisia...? A lista de efeitos colaterais é importante e extensa, somente com ela se poderia preencher essa página, lembrando-lhe que quem escreve essas linhas é um psiquiatra que não se furta a recorrer cuidadosamente aos medicamentos, quando eles se fazem necessários. Mas que nem por isso se permite destacar os neurolépticos como maior progresso no tratamento humanizado da doença mental, nem afirmar que “graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso”. Tampouco posso aceitar que se reduza o restante da clínica a um repertório de divertissements, para retomar o termo tão lucidamente criticado pelo filósofo Blaise Pascal. Mencionas as salas de jogo, de cinema, teatro, piscina e campos de esporte, mas em nenhum momento encontramos, em seu escrito, sequer uma referência às verdadeiras práticas de condução clínica vastamente documentadas.
Estranha-me, enfim, caro poeta, que de tua arte máxima não tenhas se valido para fazer uma mínima menção à psicanálise, que, como a poesia, desde Mallarmé, sempre esteve atenta à afinidade estreita entre a loucura e a palavra que sobre ela mesma se dobra.
Antônio R. M. Teixeira - Médico, Psiquiatra, Mestre em Filosofia Contemporânea, Doutor em Psicanálise - Paris VIII, Professor Associado do Departamento de Psicologia da FAFICH-UFMG, editor da revista Estudos Lacanianos e da revista eletrônica www.clinicaps.com.br, destinada à publicação de artigos em Saúde Mental.
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