sexta-feira, 17 de abril de 2009

A Política da Laranja Podre

A humanidade convive com as substâncias que hoje chamamos drogas há tempos, no entanto, os contextos, interesses e motivações para o uso têm variado significativamente. Atualmente, o consumo de álcool e outras drogas, com determinantes e motivações diferentes, atinge tanto as populações de baixa-renda quanto as classes média e alta. Não se trata apenas de produtos ilegais (maconha, cocaína, crack), mas do uso prejudicial de muitas substâncias legais como álcool, tabaco, medicamentos e inalantes (solventes).
As repercussões da produção, comercialização e consumo de drogas são percebidas nas várias interfaces da vida social: na família, no trabalho, no trânsito, na disseminação do vírus HIV, no aumento da violência, na corrupção das instituições, etc. São justamente os custos sociais, cada vez mais elevados, que tornam urgente uma ação enérgica e adequada. O dependente de drogas é, sem dúvida, o grande paradigma da nossa sociedade. Ele é o consumidor mais fiel a um produto, gerando uma demanda constante e em aumento, que tem na figura do comerciante, no caso das drogas lícitas, ou do traficante, para drogas ilícitas, o contraponto necessário para o seu consumo. Uma política apenas repressiva da produção e comercialização de drogas tem se mostrado insuficiente para conter este aumento.
É dentro deste conceito que se fala em Redução de Demanda. Há pouco mais de um mês atrás, o representante da Agência Antidrogas dos EUA dizia em sua entrevista para a Veja, que o Brasil precisa se concentrar na Redução de Demanda. Mas, afinal, o que será Redução de Demanda? O que é demanda? O Aurélio diz que demanda é: “ 1. Ação de demandar; 2. Ação judicial, processo, litígio; 3. Contestação, discussão, disputa; 4. Combate, peleja, pugna; 5. Pergunta; 6. Disposição de comprar determinada mercadoria ou serviço por parte dos consumidores, procura; 7. Quantidade de mercadoria ou serviços que um consumidor ou conjunto de consumidores estão dispostos a comprar a determinado preço; 8. Cota de quilowatts necessário ao consumo de uma cidade, empresa, indústria, etc.”
No dicionário de psicanálise não encontramos o verbete demanda, no entanto podemos pensar em algo não circunscrito ao externo. Precisaríamos falar então, de demanda interna/externa, demandas do indivíduo, do grupo, da sociedade. Vamos ouvir alguns depoimentos para entender o que é demanda para eles. Em dois dos mais recentes livros de sucesso lemos o seguinte:
“Em agosto de 1983, com o fim abrupto de um romance movido a álcool e cocaína com uma psicanalista carioca fui para Roma, ... nada melhor para curar uma rebordosa amorosa, e para sair da canoa furada da cocaína, numa outra cidade, num outro tempo, movido a arte e civilização... Em Roma me livrei da cocaína e da bebida. No Rio e em São Paulo, a cocaína reinava nas boates, nas festas, nos estúdios, nos escritórios e nas casas. E até nas areias escaldantes de Ipanema. Certo dia uma rodinha se formou em torno de uma barraca de um conhecido maestro, que esticou várias carreiras de pó, e todos cheiravam alegremente, em pleno sol do meio dia, entre barracas coloridas e vendedores de mate e limãozinho. Foi o fim da linha no Rio, a cocaína era tanta e em tantos lugares que era quase impossível sair do círculo viciado. Em Roma, onde eu conhecia pouca gente e ninguém do ramo, quebrar o hábito não foi difícil. A vida melhorou muito.” Nelson Motta (Noites Tropicais, 2000)
“Na verdade, por incrível que pareça, eu me envolvi com drogas porque elas eram um hábito corrente no meio em que eu vivia. Não vou dizer que todos se drogavam. O meu jovem grupo de amigos, sim. Eram muito loucos!... Nas boates que eu freqüentava haviam filas enormes e constantes nas portas dos banheiros. As pessoas se relacionavam intimamente naquele espaço exíguo e quase sempre promíscuo. Muitos ficavam horas e horas trancados nas cabines... Para se obter cocaína no Rio de Janeiro, bastava um telefonema: a droga era entregue no domicilio. Era uma espécie de pó delivery. Eu estalava os dedos e a coca chegava às minhas mãos... Recentemente um amigo meu, bilionário que morreu na Europa de overdose, ganhou uma sinistra performance no seu enterro: o cortejo parou para “homenageá-lo”, entre mesuras e reverências, cheirando “carreirinhas” de cocaína enfileiradas sobre o mármore das sepulturas.” Narcisa Tamborindeguy (Ai, que loucura! 2000)
Ouvindo os pacientes: “Sem a droga eu não sou eu mesma, eu não me reconheço” Amanda, 18 anos (dependente de cocaína, 1996)
“Sem beber eu trabalho, produzo, ganho dinheiro, mas a vida não tem a menor graça. A vida sem beber não tem prazer nem satisfação.” Eudo, 50 anos (dependente de álcool, 1995)
“Não tenho lembrança de nenhum momento de prazer, de descontração, de felicidade sem a bebida. O álcool sempre foi o mediador de minhas relações prazerosas com o mundo.” Edson, 53 anos (dependente de álcool, 1998)
A droga me faz sentir como um homem inteiro. Sem a droga eu sou pela metade, não consigo me relacionar com as pessoas. Sou incompleto... Quando uso a droga me sinto feliz, mesmo que seja só no começo, depois tenho um comportamento compulsivo e esta felicidade desaparece." Nelson, 45 anos (dependente de antidepressivo, 1999)
Deu no Jornal: “Dos 1594 homicídios registrados em Pernambuco, apenas 45 foram transformados em processos. Isto significa que somente 2,8% tiveram encaminhamento na Justiça. Dados das ONGs mostram que 79,3% dos crimes do estado nos seis primeiros meses deste ano não foram sequer identificados” Jornal do Comercio (Recife, 06 de julho de 2000)Quando se discute a cena midiática do seqüestro ao ônibus da linha, é destacada a ação do elemento drogado, assassinado depois de 5 horas do início do seqüestro. Vemos o uso de drogas ligado ao sofrimento individual, à angústia existencial; relacionado ao modismo, à pressão do grupo; produto da fome, da miséria, da injustiça social, da impunidade.
Como dar conta de tudo isso? De que demanda nós vamos falar? O que tem sido feito? Como temos enfrentado estes problemas? Em 1996 conversando com pais, professores e alunos de uma escola em Recife, uma mãe afirmava enfaticamente que o aluno que usa droga deve ser afastado da escola, senão, como uma laranja podre que apodrece todo o cesto, a permanência deste aluno na comunidade escolar disseminaria o uso de drogas em toda a escola. No início fiquei surpreso com a analogia, com a metáfora, depois me dei conta que é exatamente isto que vem sendo feito sistematicamente em nosso meio.
É como laranja podre que tem sido tratada a questão das drogas em todos os níveis. Algo perigoso, que deve ser abafado, reprimido, excluído. Há uma “política” instalada de excluir tanto o usuário quanto o dependente, entendido como porta-voz de todos estes males. O que acontece quando se adota esta política? Lembro um conto/crônica do Jaguar usado em um trabalho de classe de um dos meus filhos: O dia em que os jacarés invadiram Nova Iorque.
“Deu no jornal: experiências genéticas produziram minúsculos jacarés que foram vendidos aos milhares em Nova Iorque como brinquedo. Mas eles eram tão ferozes como seus ancestrais. Os pais, receosos de que seus filhos fossem mordidos, despejaram os jacarezinhos nos vasos sanitários e puxaram a descarga. Foi um erro fatal: centenas de jacarés sobreviveram e fizeram dos esgotos da cidade seu habitat e lá, durante muitos anos se reproduziram em cada geração. Sabe-se lá, dos insondáveis mistérios da genética, foram aumentando de tamanho e acabaram por produzir espécies muito maiores que os crocodilos do Nilo. Quando as autoridades se deram por conta, era tarde. Pelas saídas do metrô, pelas galerias de esgotos, pelo rio Hudson, milhões de jacarés ganhavam as ruas num ataque de surpresa e comeram grande parte da população. O mais espantoso ainda: os jacarés assimilavam a personalidade daqueles que devoravam, de modo que as estruturas da cidade não se alterou muito. Nem todos os habitantes foram comidos. Os jacarés que haviam comido os cientistas especializados em genética, começaram a fazer experiências com cobaias humanas, até que conseguiram produzir nos laboratórios, homenzinhos com apenas 20 cm de altura, que foram vendidos como brinquedo para os filhos dos jacarés. Mas os minúsculos seres, não haviam perdido a ferocidade de seus ancestrais e começaram a hostilizar seus donos com lanças improvisadas. Os jacarés com receio que seus filhos fossem machucados, pegaram os homenzinhos e despejaram nos vasos sanitários e puxaram a descarga. Foi um erro fatal para os jacarés.” Jaguar (O dia em que os jacarés invadiram Nova Iorque)
O não enfrentamento da realidade interna ou externa, a “Política da Laranja Podre”, gera o retorno do reprimido em geral de maneira incontrolável e destruidora. Ficamos a todo momento instados a dar descarga no que não compreendemos ou nos sentimos incapazes de enfrentar. A relação do homem com as drogas passa pela relação do homem consigo mesmo, para algumas pessoas a droga é a única maneira de sobreviver, de se sentir vivo. Se isto é verdade do ponto de vista psíquico, não é menos verdadeiro para o plantador de maconha no sertão nordestino. Sua sobrevivência está intimamente ligada à plantação da droga. Para a psicanálise, a toxicomania é um modo de responder aos padecimentos do nosso tempo, dizia o grupo de investigação do problema, em Barcelona/Espanha.
A imagem negativa que tem o dependente conceitualizado desde o século passado como praga social, não atende apenas à ameaça que representam as condutas de delinqüência, muitas vezes associadas a essa patologia. Está também no fato de que se trata de indivíduos diferentes em relação ao modo de gozar. Um gozo fora do gozo fálico que sustenta o mundo social. Um gozo mortífero, que resulta ameaçador, não só porque é auto-destrutivo, mas, porque supõe um perigo à ordem estabelecida pelo Outro social.
No seu livro "Droga, Psicanálise e Toxicomania" Ocampo enfatiza a importância de examinar o tipo peculiar de vínculo que estabelece o consumidor com a droga. A droga seria o objeto exclusivo de um prazer necessário. A relação de exclusividade do toxicômano com a droga é indissociável de sua intenção de rechaçar, de excluir, a todo possível companheiro de prazer, aspirando assim a um ideal narcisista de autonomia no gozo. A psicanálise tem tratado este tema de maneira muito ambígua. Assistimos às teorias mais desencontradas, sobre a elegibilidade ou não do paciente dependente para a análise. A mistificação, aliada às nossas próprias dificuldades, tem contribuído para que deixemos de ver que, os conceitos psicanalíticos e modelos metapsicológicos são os que mais se adequam para desarmar as armadilhas da rigidez da técnica e da indigência do pensamento comportamentalista.
É possível desmotivar-mos os indivíduos para o uso de substâncias que, quando experienciadas, são capazes de criar sensação de não haver falta? Perguntam-se os organizadores de um livro sobre toxicomanias. Não há tratamento químico para este sentimento de aniquilamento psíquico, há que se trabalhar psiquicamente este sentimento de falta, de incompletude. Só assim é possível criar outros caminhos de expressão e elaboração de seu sofrimento. Não há como ajudar efetivamente o plantador nordestino sem que se crie possibilidades concretas de desenvolvimento de caminhos alternativos, culturas substitutivas ao plantio da droga. Esta política de exclusão também aparece quando se caracteriza alguém como dependente. O diagnóstico significa a emissão de um juízo de valor e tem portanto um efeito segregador. O diagnóstico como uma forma de identificação que reúne um conjunto de sujeitos sob determinado significante, abolindo suas particularidades podem produzir marcas decisivas na vida de uma pessoa. Até entre os próprios consumidores de drogas temos segregação, seja em relação a droga de escolha ou à via de administração, temos observado que os usuários de cocaína e os UDIs são mais rechaçados do que os consumidores de álcool ou maconha. Evidente que o problema não é simples, e que não temos as respostas para todas as nossas perguntas, mas não aceito a afirmação de que neste campo não se sabe nada e portanto tudo pode ser dito e feito. Já sabemos muita coisa e principalmente já temos clareza do que não queremos.
Quando se fala em Redução de Demanda sempre vem junto a idéia de criação de novas leis restritivas, de novos métodos de abordagens. Novamente me socorro no já escrito, no já vivido e cito três artigos, dois do início do século e outro do final. Quase cem anos separam estes textos.
O primeiro, Machado de Assis em um conto de 1906: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais... havia a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhe tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.” MACHADO DE ASSIS (Pai contra mãe, 1906)
O segundo, Antonin Artaud, dependente de ópio, em uma carta aberta de 1917, como reação à lei que proibia a venda livre da droga: “Senhores ditadores da escola farmacêutica da França, os senhores são todos uns petulantes mesquinhos; tem uma coisa que deveriam considerar melhor; o ópio é essa imprescritível substância que permite devolver à vida de sua alma àqueles que tiveram a desgraça de perdê-la. Tem um mal contra o qual o ópio é soberano e este mal se chama Angústia, em sua forma mental, médica, psicológica, lógica ou farmacêutica, como os senhores queiram. A Angústia que faz os loucos. A Angústia que faz os suicidas. A Angústia que faz os condenados. A Angústia que a medicina não conhece. A Angústia que o seu médico não entende. A Angústia que acaba com a vida. A Angústia que corta o cordão umbilical da vida. Pela sua lei iníqua, os senhores põem em mãos de pessoas nas quais eu não tenho confiança, castrados em medicina, farmacêuticos de porcaria, juízes fraudulentos, doutores de parteiras, inspetores doutorais, o direito de dispor de minha Angústia, uma Angústia que é em mim tão aguda quanto as agulhas de todas as bússolas do inferno. Tremores do corpo e da alma, não existe sismógrafo humano que permita a quem me olhe chegar a uma avaliação mais precisa de minha dor, do que aquela, fulminante, feita pelo meu espírito! Toda a fortuita ciência dos homens não é superior ao conhecimento imediato que posso ter do meu ser. Sou o único juiz do que se passa comigo. Voltem aos seus sótãos, médicos parasitas, e você também, senhor legislador Mountonnier, que não é por amor aos homens que você delira, é por tradição de imbecilidade. A sua ignorância acerca do que é um homem é apenas comparável à sua estupidez na pretensão de limitá-lo. Desejo que a sua lei recaia sobre o seu pai, sobre a sua mãe, sobre a sua mulher e os seus filhos, e toda a sua posteridade. Enquanto isso, suporto a sua lei”. ANTONIN ARTAUD (Carta ao Sr. Legislador, 1917)
O terceiro, outro francês, o professor Claude Olivenstein em, Ser Toxicômano no ano 2000, na Bahia em 1998: “Apostamos, que no ano 2000 a maioria dos toxicômanos que perturbam a vida dos cidadãos nos centros das cidades será, queira ou não, domesticada. Ao lado disto, nos países onde os governantes não disponham dos meios necessários para esta domesticação, os toxicômanos viverão uma vida cada vez mais miserável, engolirão qualquer coisa e desabarão em uma dor sem fim. Em resumo: podemos pensar que no próximo milênio haverá progressivamente maiores diferenças entre os países ricos e os países pobres; entre as classes ricas e as classes pobres. Para os pobres, o aparelho institucional será a aliança entre a polícia e os médicos. Seus objetivos mais ou menos confessados serão o de garantir a segurança das camadas dominantes. As medidas-alibi institucionais serão, essencialmente, meios de assistência mais numerosos e pouco eficazes. Quanto aos países ricos e às classes ricas, se bem que a questão da segurança esteja também presente, tudo se passará como se os toxicômanos alcançassem estruturas destinadas a "curá-los". Evidentemente, estarão disponíveis para eles instituições comportamentais onde aprenderão a se reprogramarem e a aceitar uma relação de dependência da droga." CLAUDE OLIEVENSTEIN (Ser toxicômano no ano 2000, Bahia, 1998)
Iniciando o terceiro milênio não podemos continuar amordaçando nossos dependentes como os senhores de escravos do início do século, ou consentindo um gozo domesticado no dizer de Olivenstein. Precisamos criar alternativas à Política excluidora da Laranja Podre, ou fatalmente veremos as modernas manifestações do retorno do reprimido e novas tentativas de segregá-lo. Muito obrigado!
Venho hoje, para dizer que não venho mais. Venho hoje, para dizer que não venho. Esta é uma demanda freqüente em nossos consultórios com toxicômanos.
Evaldo Melo de Oliveira - Médico/Psicanalista

Nenhum comentário:

Postar um comentário