sexta-feira, 17 de abril de 2009

Drogas: o impasse da paixão

Gilberto Velho, antropólogo da UFRJ, falando sobre a construção social da realidade diz que a sociedade humana é pela própria natureza um fenômeno complexo, e em suas relações com as drogas expressam simultaneamente uma relação com a natureza, e um processo singular de construção social da realidade. Ainda não se encontrou nenhum grupo em que não se registrasse algum reconhecimento de alterações significativas de percepção e relação com o mundo circundante. Sabemos também que estas alterações não são produtos exclusivos de ingestão de substâncias, estando freqüentemente associadas a transe e possessão, dissociadas da utilização de qualquer tipo de estimulante.
Erasmo de Rotterdam, em 1508, escrevia em Elogia à Loucura, que para os estóicos, sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é aquele que se arrasta ao sabor de suas paixões. Por isso que Júpiter com receio que a vida dos homens se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um para vinte e quatro.
Maria Rita Kehl falando sobre o código do amor em os Sentimentos da Paixão destaca: Menos come e menos dorme aquele que está cercado por pensamentos de amor. O amante não pode saciar-se do gozo daquele que ama. O hábito excessivo dos prazeres impede o nascimento do amor.
Comentando sobre o assunto Zeferino Rocha em seu livro “Paixão, Violência e Solidão”, diz que a fome de amor é insaciável, porquanto o único objeto que seria suposto poder satisfazer esta fome, é um objeto para todo o sempre perdido. O registro da fome do amor não é a necessidade, é o desejo. O mandato superegoico, Goze, se traduz hoje pelo significante, Consuma. O consumo de drogas é inteiramente pertinente a esse contexto, há uma forte promessa de felicidade no consumo, uma aposta na satisfação possível de todas as demandas.
"É evidente que o desamparo humano aumentou com a pós-modernidade, pois com o fim das utopias e dos messianismos alimentados pela modernidade, não conseguem fazer frente às dores e desesperanças produzidas pela atualidade. As drogas lícitas dos botecos e das farmácias tendem à mesma solução, o evitamento da dor, de qualquer sofrimento possível. É por esse viés que se pode apreender o crescimento paralelo da indústria do narcotráfico e dos psicofármacos." (Joel Birman).
Claude Olivenstein na tentativa de compreender historicamente as instituições de tratamento para toxicômanos, começa citando Foucault. No fim da Idade Média a lepra grassava e os leprosos ocupavam um lugar importante na exclusão. O fim da lepra deixará um grande vazio e teremos de esperar um longo tempo por uma nova encarnação do mal. Vazios, os leprosários encontrarão novos pensionistas alguns séculos depois. O que tomará o espaço da lepra será a loucura.
Na contemporaneidade, a AIDS e as toxicomanias vêm ocupar esse lugar. Para isso, movida pelo medo, a sociedade busca o discurso médico e o discurso moral. A exclusão vem atender ao receio do contágio. É da mesma origem a exclusão de um portador do HIV, de seu quadro de clientes por um dentista. Um paciente meu passou por esta situação a semana passada. Ou a expulsão do adolescente que foi flagrado usando maconha no colégio. O discurso era exatamente o mesmo: não posso correr o risco de contaminar outros clientes. Tenho que proteger outros alunos de influências perniciosas.
Voltemos para as colocações iniciais do Gilberto Velho. As alterações de percepção da realidade não são produto unicamente das substâncias, sempre pergunto nas minhas conversas sobre drogas, se a platéia já teve a felicidade de viver uma grande paixão. Uma paixão como dizem os cronistas: avassaladora. Que características tem este estado? O que se passa com o apaixonado no aspecto físico, psíquico, relacional? Vejamos algumas respostas que se repetem: na paixão há uma grande dificuldade de separação, todo tempo junto não é suficiente, quando se está longe há sentimento de dor física com a saudade, há um desconforto quando se aproxima o encontro, o coração bate diferente, as mãos ficam frias, não se tem fome. O único assunto de seu discurso é seu amor e o objeto de sua paixão. Ele nunca tem defeitos, e se os tem não aceita que ninguém o diga. Gradualmente se afasta de outros interesses, outras pessoas, para se dedicar à vivência de sua paixão e ao amado. Imaginemos que este amado ou amada, seja um notório canalha, e está absolutamente claro para todos que esta relação terminará por provocar intensos sofrimentos ao apaixonado. Nada nem ninguém conseguirão dialogar no sentido destas evidências, e a pessoa que terminará por se afastar, se houver insistência. Estão descritos neste parágrafo todos os principais sintomas necessários para fazer um diagnóstico de dependência. Mas, não há droga, não há substância, todas as modificações físicas, psicológicas e relacionais aconteceram sem nenhum estímulo químico.
“Eu só me sinto eu mesmo quando estou sob o efeito da droga”, “Não há graça em viver sem droga, não sinto alegria, não tenho vontade de continuar vivendo”, ”Sem droga estou morto”. É preciso compreender que o sentimento do toxicômano é de ter encontrado seu objeto procurado. Aquele que elimina o sentimento da falta, da carência, do desamparo. O toxicômano tem outro tipo de gozo. Para Jacques Allan Miller “existe outro tipo de gozo que não passa pelo corpo do outro, mas pelo próprio corpo sob a rubrica do auto erotismo. É um gozo cínico. O uso do corpo, do próprio corpo, se dá para metaforizar o gozo do corpo do Outro. Esse curto circuito opera assegurando ao toxicômano o casamento com o próprio pênis.” O toxicômano vive o impasse da paixão. Seu objeto de amor é sua arma de destruição. Ele sabe, mas não quer se livrar. Ele quer, mas não pode se afastar. Ele não bebe para falar, ele fala bebendo. O toxicômano tornou-se paradigma da sociedade de consumo, já que ela exige consumidores fieis. O que mais choca na toxicomania é a monotonia, a repetição do mesmo ritual durante anos. Como ajudá-lo a quebrar esta monotonia, esta repetição? O que queremos negando ao toxicômano o direito de usar a droga? “O toxicômano é sujeito, não objeto, e deve ser respeitado em sua liberdade desviante”. “O contrário da dependência não é a abstinência e sim a liberdade”.
Mas estamos sempre falando do toxicômano chamado por Olivenstein de VERO, mas estes não são a maioria dos nossos clientes. Grande parte dos que me procuram ou estão nos consultórios dos colegas terapeutas aqui presentes, são usuários com outro grau de comprometimento, de gravidade. Para eles a possibilidade de exercitar uma relação diferente, verdadeira, possibilitará a discussão do uso e suas conseqüências. Para eles o uso da droga será uma paixão passageira da qual guardarão algumas lembranças. Boas e más. Não vamos entrar nesta armadilha de pensar que todo usuário de drogas é toxicômano, que todo deprimido se curará com medicação. Não vamos entrar nesta conversa que o usuário faz o tráfico, afastemo-nos do discurso fácil e escapista. A sociedade é muito mais complexa do que quer a Rede Globo. Devemos nos afastar do discurso farmacotóxico. As motivações humanas são muito mais complicadas do que as reações de causa e efeito. Saímos há muito do uso ritualístico das substâncias, não estamos ainda preparados para enfrentar o abandono, o desamparo provocado pela sociedade de consumo e pela globalização. O uso de drogas é uma tentativa mágica e trágica de enfrentar este sofrimento. Ficamos muito chocados com a divulgação de mais um parricídio, com toda razão, mas banalizamos as chacinas diárias de adolescentes ditos do mundo do tráfico. Somos contemporâneos de um dos maiores filicídios da história da humanidade. Estamos passivos!!!
Evaldo Melo de Oliveira - Médico/Psicanalista

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