quarta-feira, 7 de abril de 2010

Ouviu o Galo Cantar e Sabe Onde

...mas diz que é em outro terreiro!

O texto de Contardo Calligaris (encontrável em seu Blog, no endereço: http://contardocalligaris.blogspot.com/) a respeito do brutal assassinato de Glauco e Raoni contém importantes pontos de reflexão: qual é, efetivamente, a dimensão real de periculosidade que a condição da loucura comporta? O que significa ignorar isso, no suposto otimismo, apontado por Calligaris como aquilo “que nos leva aacreditar na possibilidade de transformações definitivas” [...] e que é “provavelmente, um efeito da ideia cristã de que não existe um pecado que não possa ser esquecido e perdoado se o penitente for sincero”. A leitura de seu texto também me suscitou a velha questão dessa espécie de benevolência que consiste em tornar “inadmissível internar um indivíduo perigoso na intenção de proteger a sociedade dos atos que ele poderia cometer”, e, indo mais longe, recoloca a questão da inimputabilidade e da irresponsabilidade civil do louco, que me parece exigir uma análise caso-a-caso, no mínimo.

São questões sérias, agudas, cruciais, e que devem ser trazidas ao debate público em uma sociedade democrática, como a nossa, que se consolida cada vez mais nesse estatuto.
No entanto, no mesmo espírito democrático que, quero crer, lastreia a iniciativa de Calligaris em trazer ao debate público as questões que o assassinato de Glauco e Raoni a seu ver coloca, quero expressar, de forma igualmente pública, os perigosos desdobramentos de um pensamento como o de Calligaris, sobretudo quanto à influência que pode ter na formação de uma opinião pública favorável às internações psiquiátricas. O problema que vejo nisso não é a defesa da internação psiquiátrica, que, concordemos com ela ou a deploremos, ela é, de resto, uma posição como qualquer outra, tão legítima quanto qualquer outra no debate democrático. O problema maior é fazer crer ao leitor que, de todas as medidas possíveis de tratamento, assistência, atenção, reabilitação, cuidado ou proteção àquele que sofre de transtornos mentais, a internação seria aquela que maior eficácia teria, no caso em questão, no impedimento do atos perigosos como o assassinato de Glauco e Raoni.
Senão, vejamos. Será que se internássemos todos os cidadãos que emitissem sinais de periculosidade (começando pelos que andam com cães pitbull pelas ruas, ou que se parecem, eles próprios, com esses cães pitbull), teríamos reduzida a estatística de assassinatos? Não me parece evidente. Mas certamente teríamos a maior taxa de internação e superlotação de manicômios do planeta. Os indivíduos “perigosos” deste tipo, os agressivos, impulsivos, que estrangulam namoradas que terminam o namoro com eles ou atiram filhos pela janela por acharem que já os mataram por atos precedentes, esses não são os verdadeiros loucos, os psicóticos sobre os quais incidem em geral (e cada vez menos, felizmente) as internações psiquiátricas.
Será que já nos detivemos suficientemente no fato clínico, evidência comprovada por qualquer profissional experiente da área da saúde mental, de que o louco que comete crime o faz no interior de uma história, um enredo, um delírio que tem uma estrutura discursiva, um texto, uma narrativa? [que não se entenda que estou com isso afirmando qualquer atenuante para o ato, mas sim situando-o no interior de uma estrutura que nos permite intervir, acessar, tratar a patologia do ato, digamos, que pode conter tanta violência quanto qualquer outro ato de qualquer outro cidadão não louco - a violência, a morte causada ou sofrida está para todos]. Este é exatamente o caso, aqui mais uma vez comprovado, de Cadu, o assassino de Glauco, em relação ao qual ele vinha entretendo uma complicada história. Ora, o que é que uma internação faz senão começar por cortar justamente os elos da história, os ganchos textuais, as referências do enredo e a própria narrativa, inclusive aquela que poderia comportar a morte ou o assassinato como seu ponto de confluência? Então a internação é precisamente o que retira os meios de acesso, tratamento e evitação do ato, por cortar o texto que lhe fornece o enredo. Se evita o ato agressivo, é simplesmente por evitar qualquer outro, por paralisar o movimento, o pensamento e a ação. Entende-se o que aqui se diz? A internação não é condenável por ser pouco humanitária, mas por ser burra mesmo, cientificamente falando, é uma asneira sem qualquer possibilidade de validação pela inteligência ou pela razão científicas: Se o ato eventualmente assassino de um doente mental requer, necessita de um delírio que o determine, cortar as vias de acesso e tratamento do delírio (internar) é um curiosíssimo método que consiste em privar-se justamente dos meios mesmos de chegar aos seus objetivos.
Pela via da internação, não estaríamos tratando nossos “perigosos” loucos, que estão longe de ser os mais perigosos cidadãos exatamente por força de sua narrativa delirante, que fornece sinais, alertas, pedidos de intervenção que impeçam seus atos, via de regra do modo tempestivo. A história da psiquiatria mundial já demonstrou suficientemente que a internação não é a forma mais eficaz de tratamento dos distúrbios psíquicos – muito pelo contrário -, e um psicanalista não poderia ignorar isso. Contardo Calligaris é um psicanalista.
É importante deixar aqui bem claro que, no importantíssimo processo histórico que atravessamos e que responde pelo nome de Reforma Psiquiátrica Brasileira, a internação não é um recurso execrável e inadmissível, como sugere Calligaris, em uma alusão que, embora anônima, deixa bem clara sua referência ao processo da luta anti-manicomial que o campo da Saúde Mental e as Políticas Públicas em vigor no Brasil sustentam, porque pactuadas junto à sociedade brasileira. A internação é um recurso legítimo, aplicável, indicável, necessário e em alguns casos indispensável, mas desde que articulada a uma rede de cuidado cuja lógica, pautada nas ações comunitárias, territoriais, intersetoriais – a sociedade toda precisa se envolver com a questão da loucura e dos seus "perigos" – não é a lógica da segregação, da exclusão, da internação como exílio social no próprio seio da sociedade. No caso de Cadu, uma internação certamente poderia ter sido bastante acertada e providencial. Mas esta internação estaria sendo acompanhada por equipes de saúde mental não hospitalares, e o delírio de Cadu, uma vez tratado, teria tomado outro curso, como em centenas de casos clínicos similares que teríamos a contar aqui e a fornecer como evidências científicas do que estamos afirmando, nos quais assassinatos, em geral de familiares e pessoas muito próximas do doente, determinados por “comandos mentais” deixaram de ocorrer pela intervenção das equipes de técnicos responsáveis pelo tratamento fora da internação.
Contra a crença inabalável em uma redenção inexorável – cujos equívocos e perigos Calligaris corretamente assinala – este autor poderia fazer inúmeros e outros questionamentos, envolvendo diversos procedimentos e dispositivos, ao invés de simplesmente invocar a internação e lamentar que ela não tenha sido praticada. Poderia interrogar que medidas de atenção e tratamento o assassino, Cadu, estaria recebendo de equipes de saúde mental do território (Osasco); Poderia indagar se essas equipes, bem como as do PSF (Programa de Saúde da Família) local colocaram-se ao alcance da comunidade do Santo Daime (Céu de Maria) que Cadu freqüentava e onde já tinha dado inúmeros sinais de seu transtorno (a ponto de estar proibido de tomar o chá alucinógeno dos rituais); Poderia também indagar por que essas equipes não estavam intervindo junto a Cadu, levando-o ao Centro de Atenção Psicossocial mais próximo, ou que espécie de rede social protetiva ou preventiva poderia ter detectado o perigo iminente de um ato com o dele e assim o tivesse podido evitar, fazendo justamente o trabalho que precisava ser feito com respeito ao delírio e às histórias que circundavam o ato assassino final, trabalho que é justamente o que as internações não fazem. Se Calligaris fizesse essas perguntas, estaria engrossando as fileiras de milhões de brasileiros que vêm, há quase trinta anos, lutando de forma árdua e exitosa contra as truculentas, ineficazes e mercenárias (com o dinheiro público) práticas manicomiais no Brasil.
Mas Calligaris preferiu, ao analisar a relação entre a doença mental e a violência que matou Glauco e Raoni, iludir a si mesmo e à opinião pública quanto aos poderes enganosos da internação como forma de enfrentamento dessas eventuais associações entre loucura e violência.
É uma pena.

Abraços a todos, em particular a Beatriz, viúva de Glauco, seus filhos, a namorada de Raoni, e aos companheiros da luta anti-manicomial, que é também a luta anti-violência, anti-assassinatos de todas as espécies.
Luciano Elia, psicanalista, é um desses companheiros.

Texto enviado pela Coordenação Estadual de Saúde Mental MG.

2 comentários:

  1. Muito bom o texto, atravez dele é importante ressaltar o ponto de vista do autor que se refere a luta anti-manicomial e a luta anti-violência que precisa de uma campanha muito maior neste Brasil.
    Farei o possivel para ajudar a divudar.
    parabens

    ResponderExcluir
  2. Olá Fabiano,

    Obrigada pelo comentário. Podemos ter acesso ao seu blog? Obrigada.

    Abraço,

    Samara.

    ResponderExcluir