quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Brasil Tem Novo Jeito de Encarar a Loucura


Basta um toque na campainha para constatar que aquela é uma casa especial. Os moradores, gente de riso fácil, esticam os braços no portão, para dar boas-vindas. São cinco homens e quatro mulheres que, depois de mais de 15 anos de internação na Clínica Psiquiátrica Nossa Senhora de Lourdes, desativada em 2008 em Belo Horizonte, vivenciam a alegria de comandar o próprio destino e resgatar a cidadania, num espaço que pode ser chamado de lar. Na residência terapêutica, no Bairro Carlos Prates, Região Noroeste da capital, pessoas abandonadas pela família e afastadas da sociedade por serem tachadas de loucas constituem novos laços afetivos. Lá não há alas, mas quartos. Nem enfermeiros, e sim cuidadores. Um exemplo de um programa que coloca o Brasil sob os holofotes da comunidade internacional quando o assunto é o tratamento dado ao que já foi simplesmente conhecido como loucura. Sônia Maria da Silva, a Soninha, de 42 anos, uma das moradoras da casa do Bairro Carlos Prates, sabe que o destaque dado ao programa é merecido. Se alguém lhe sugere que retorne a um hospital psiquiátrico, ela responde com uma careta, em sinal de repúdio, assim como Jaci Ribeiro de Oliveira, de 59, que mora no mesmo endereço. Em dezembro, Soninha chegou com a roupa do corpo à nova casa, depois de 15 anos de internação. Hoje, sabe o que é xampu, como tomar um banho... Aprendeu até o que é amar. Ela namora Haroldo Ferreira Barbosa, de 69, com quem também divide a casa e que tem diagnóstico de retardo mental. “Antes, era a enfermeira que me dava banho, e eu vivia pegando piolho. Eles não deixavam a gente sair, me batiam”, afirma Soninha, que sofre com crises convulsivas e é psicótica. Uma das 22 em BH, a residência terapêutica faz parte de uma rede de tratamento e suporte que visa a dar fim aos manicômios e, com eles, a uma história contada com choques, traumas e maus-tratos. Essa rede de assistência privilegia serviços não hospitalares e de base comunitária e está referenciada na Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde. Em breve, também será exemplo para uma reforma psiquiátrica global. O Brasil acaba de ser convidado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para integrar, com mais nove países, um grupo consultor do Programa de Ação para Superar Lacunas em Saúde Mental. O objetivo é desenvolver uma estratégia global para melhorar o tratamento dado a pessoas com transtornos mentais, neurológicos ou a viciados em álcool e drogas. Na avaliação da OMS, dos 193 países integrantes da organização, 105 apresentam estrutura precária para atender a esse tipo de paciente.

Exemplo

Brasil, Itália, Egito e Holanda confirmaram presença na primeira reunião do grupo, que deve ocorrer em outubro, em Genebra, na Suíça. “A OMS apontou a experiência brasileira como exemplo pelo foco na atenção comunitária. Os serviços estão próximos do paciente”, afirma a assessora da Coordenação de Saúde Mental do ministério, Karime Porto, referindo-se à ampla rede de assistência que integra o programa. As residências terapêuticas são apenas parte desse complexo. Elas recebem pacientes que, após longos períodos de internação, perderam o vínculo com a família e, mesmo restabelecidos, não encontram mais referência fora dos manicômios. Com o benefício de R$ 320, do programa federal “De volta para casa”, eles ganham estímulo para reconstruir a vida. Segundo o ministério, cerca de 35% dos leitos psiquiátricos são ocupados justamente por essas pessoas. Articulado com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, o tratamento substitutivo conta ainda com Centros de Atenção Psicossocial (Caps), onde pacientes em crise recebem atendimento médico e psicológico. Se o surto ocorre de madrugada, hospitais comuns acolhem essas pessoas. Uma vez recuperadas, elas são atendidas por equipes de atenção básica, nos postos de saúde. Em centros de convivência, usuários como Sérvio Sadi, de 46 anos, descobrem um novo sentido para a vida em oficinas de arte. Nesses locais, o relacionamento social torna-se o melhor remédio contra a doença. Com a consolidação dessa estrutura substitutiva, a ideia é acabar, gradualmente, com os 208 hospitais de internação ainda abertos no país – 19 deles em Minas –, que oferecem 35,4 mil leitos (veja quadro). Até lá, os desafios são muitos. Apesar de referência mundial, o complexo dos Caps no Brasil cobre apenas 57% da população. A verba anual destinada à saúde mental é de R$ 1,3 bilhão, o que representa 2,7% do orçamento da saúde. Dinheiro para tratar os 3% de brasileiros que sofrem transtornos mentais graves e outros 9%, que têm sofrimento leve. “Uma boa parcela da população ainda precisa de atendimento. Trabalhamos para chegar a pelo menos 80% de cobertura até 2013”, ressalta Karime. Com política de combate a manicômios e criação de redes de atendimento, Brasil deixa para trás tratamento desumano em instituições sombrias e vira referência mundial no assunto.

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