Nestas duas últimas décadas, sobretudo nos anos 90, aconteceu uma mudança radical. Mudou a tonalidade dominante das queixas e do sofrimento psíquico. Nosso mal-estar passou a se expressar de maneira nova, trocou de dialeto, de aparência e de cheiro: somos cada vez menos angustiados e cada vez mais deprimidos.
A angústia foi boa companheira da modernidade durante quase dois séculos: do romantismo ao existencialismo, ela se encarregou de representar o mal-estar de nossa cultura.
Além do gosto acre de suor frio, além da sensação de vazio interno, de suspensão sem fôlego, além do sofrimento ser angustiado foi, nessa época toda, um chique literário e filosófico. Ou melhor, uma espécie de marca retórica que confirmava a seriedade das apostas e do envolvimento com a verdade. Você quer ser levado a sério? Mostre-me suas angústias! Elas não mentem.
Hoje, o mesmo passou a valer para a depressão. Além do bafo de dentes não escovados e do relento da cama desfeita, a depressão também é um chique. Desde ‘Darkness Visible’ de William Styron (em 1990), se multiplicam os relatos de catástrofes depressivas e lutas heróicas. Em dez anos, já são centenas, uma espécie de gênero literário autônomo.
Essa constatação cultural e clínica é corroborada pela inquietação dos organismos internacionais que monitoram nossa saúde. A depressão é hoje nos países ocidentais, o inimigo número 2: a condição mais invalidante depois das doenças cardíacas. É um fato no mínimo curioso para um sintoma que, até 15 anos atrás, mal era reconhecido em sua autonomia.
O que aconteceu? Uma epidemia? Algum novo vírus? Sem dúvida, a indústria farmacêutica sabe promover as doenças para as quais ela tem um remédio com boa perspectiva comercial. Ou seja, ela encontra um remédio, em seguida nomeia a doença curada por ele, a faz existir culturalmente e, portanto, nos sugere (ou impõe) sofrer segundo sua forma. O que garante que a gente recorra ao remédio que está na origem da empreitada. De fato, os antidepressivos comercializados no fim dos anos 80 inauguraram o sucesso da depressão. Foi com a descoberta do Prozac que a depressão passou a existir como fenômeno cultural e se constituiu como uma entidade nosográfica popular.
Nessa direção, vale a pena ler o livro de David Healy, “The Antidepressant Era” (Harvard 1998). Healy argumenta que a idéia da depressão como patologia específica foi um achado dos laboratórios à caça de clientes para sua nova invenção: os remédios que aumentam a serotonina (Prozac, Paxil, Zoloft etc.). De fato, nos últimos anos, várias pesquisas vêm mostrando que o déficit de serotonina talvez não seja a razão biológica única, ou mesmo decisiva da depressão, e sugerem uma visão mais complexa tanto das depressões quanto de sua abordagem terapêutica.
Nesse clima, seria tentador considerar que o sucesso cultural da depressão seja só um efeito da invenção dos antidepressivos. Mas a idéia não alcança.
Seria impossível afirmar, por exemplo, que o sucesso da angústia foi produzido pela invenção dos ansiolíticos: a angústia começou bem antes. Em outras palavras, as formas de nosso mal-estar não dependem só das sugestões farmacêuticas.
Resta que, neste fim de século, com a ajuda dos laboratórios, a depressão ganhou da angústia. Hoje parece mais interessante (e mais bem recebido socialmente) ser deprimido do que angustiado. A depressão parece mais verdadeira, como se ela manifestasse o que somos, melhor do que a angústia.
Por que? Posso propor uma hipótese: a angústia foi a primeira forma do mal-estar moderno, a expressão do drama de gerações que renunciaram ao mundo ordenado por tradições e hierarquias e tentaram caminhar por conta própria. Ela é a companheira das grandes expectativas, dos futuros incertos, sonhados e receados. Ela é, em suma, o mal-estar do liberto: e agora? O que fazer? Aonde ir?
Ora, contemporânea à chegada do Prozac e da depressão, surgiu (e vem ganhando terreno) a idéia de que a história acabou: basta de expectativas e sonhos incautos. Nem tudo é perfeito, mas alcançamos a época dos ajustes finais. Não cabe mais projetar grandes mudanças e sofrer entre anseios e ansiedades, se perguntando como as coisas do mundo vão ficar. O mundo está mais ou menos resolvido. Está na hora de se ocupar da gente, de sorrir, ou fazer caretas no espelho, até ficarmos convencidos de que somos felizes e bonitos.
Com isso, ficamos, sobretudo, deprimidos, pois qualquer furúnculo na ponta do nariz afeta o que mais nos importa: a nossa própria imagem. É uma razão para não sair de casa, ficar na cama, deixar de ser e de fazer, contemplando no espelho o retrato de nossa inadequação.
O anseio de futuros gloriosos, em suma, está sendo substituído por uma inconsolável e preguiçosa tristeza: o furúnculo especular nos imobiliza e, assim como a consciência para Hamlet, nos torna, eventualmente, todos covardes.
Trocam-se, por assim dizer, aspirações e ideais, por um bom creme antiacne.
A angústia foi boa companheira da modernidade durante quase dois séculos: do romantismo ao existencialismo, ela se encarregou de representar o mal-estar de nossa cultura.
Além do gosto acre de suor frio, além da sensação de vazio interno, de suspensão sem fôlego, além do sofrimento ser angustiado foi, nessa época toda, um chique literário e filosófico. Ou melhor, uma espécie de marca retórica que confirmava a seriedade das apostas e do envolvimento com a verdade. Você quer ser levado a sério? Mostre-me suas angústias! Elas não mentem.
Hoje, o mesmo passou a valer para a depressão. Além do bafo de dentes não escovados e do relento da cama desfeita, a depressão também é um chique. Desde ‘Darkness Visible’ de William Styron (em 1990), se multiplicam os relatos de catástrofes depressivas e lutas heróicas. Em dez anos, já são centenas, uma espécie de gênero literário autônomo.
Essa constatação cultural e clínica é corroborada pela inquietação dos organismos internacionais que monitoram nossa saúde. A depressão é hoje nos países ocidentais, o inimigo número 2: a condição mais invalidante depois das doenças cardíacas. É um fato no mínimo curioso para um sintoma que, até 15 anos atrás, mal era reconhecido em sua autonomia.
O que aconteceu? Uma epidemia? Algum novo vírus? Sem dúvida, a indústria farmacêutica sabe promover as doenças para as quais ela tem um remédio com boa perspectiva comercial. Ou seja, ela encontra um remédio, em seguida nomeia a doença curada por ele, a faz existir culturalmente e, portanto, nos sugere (ou impõe) sofrer segundo sua forma. O que garante que a gente recorra ao remédio que está na origem da empreitada. De fato, os antidepressivos comercializados no fim dos anos 80 inauguraram o sucesso da depressão. Foi com a descoberta do Prozac que a depressão passou a existir como fenômeno cultural e se constituiu como uma entidade nosográfica popular.
Nessa direção, vale a pena ler o livro de David Healy, “The Antidepressant Era” (Harvard 1998). Healy argumenta que a idéia da depressão como patologia específica foi um achado dos laboratórios à caça de clientes para sua nova invenção: os remédios que aumentam a serotonina (Prozac, Paxil, Zoloft etc.). De fato, nos últimos anos, várias pesquisas vêm mostrando que o déficit de serotonina talvez não seja a razão biológica única, ou mesmo decisiva da depressão, e sugerem uma visão mais complexa tanto das depressões quanto de sua abordagem terapêutica.
Nesse clima, seria tentador considerar que o sucesso cultural da depressão seja só um efeito da invenção dos antidepressivos. Mas a idéia não alcança.
Seria impossível afirmar, por exemplo, que o sucesso da angústia foi produzido pela invenção dos ansiolíticos: a angústia começou bem antes. Em outras palavras, as formas de nosso mal-estar não dependem só das sugestões farmacêuticas.
Resta que, neste fim de século, com a ajuda dos laboratórios, a depressão ganhou da angústia. Hoje parece mais interessante (e mais bem recebido socialmente) ser deprimido do que angustiado. A depressão parece mais verdadeira, como se ela manifestasse o que somos, melhor do que a angústia.
Por que? Posso propor uma hipótese: a angústia foi a primeira forma do mal-estar moderno, a expressão do drama de gerações que renunciaram ao mundo ordenado por tradições e hierarquias e tentaram caminhar por conta própria. Ela é a companheira das grandes expectativas, dos futuros incertos, sonhados e receados. Ela é, em suma, o mal-estar do liberto: e agora? O que fazer? Aonde ir?
Ora, contemporânea à chegada do Prozac e da depressão, surgiu (e vem ganhando terreno) a idéia de que a história acabou: basta de expectativas e sonhos incautos. Nem tudo é perfeito, mas alcançamos a época dos ajustes finais. Não cabe mais projetar grandes mudanças e sofrer entre anseios e ansiedades, se perguntando como as coisas do mundo vão ficar. O mundo está mais ou menos resolvido. Está na hora de se ocupar da gente, de sorrir, ou fazer caretas no espelho, até ficarmos convencidos de que somos felizes e bonitos.
Com isso, ficamos, sobretudo, deprimidos, pois qualquer furúnculo na ponta do nariz afeta o que mais nos importa: a nossa própria imagem. É uma razão para não sair de casa, ficar na cama, deixar de ser e de fazer, contemplando no espelho o retrato de nossa inadequação.
O anseio de futuros gloriosos, em suma, está sendo substituído por uma inconsolável e preguiçosa tristeza: o furúnculo especular nos imobiliza e, assim como a consciência para Hamlet, nos torna, eventualmente, todos covardes.
Trocam-se, por assim dizer, aspirações e ideais, por um bom creme antiacne.
Contardo Calligaris
Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário