O filósofo e ensaísta Peter Pál Pelbart, além das funções de autor e de professor no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordena um grupo de teatro que causa grande interesse tanto na classe artística quanto no público em geral. No entanto, não se trata de um grupo que pesquisa novas linguagens ou experimenta diferentes estéticas. O particular nesse caso é que a Cia. Teatral Ueinzz é formada exclusivamente por pessoas com distúrbios mentais. "O modo como esse grupo nasceu é muito significativo para nós. É o símbolo de como aquilo que não se entende - o não-sentido - pode servir de terreno para um projeto de expansão da vida, individual e coletivo", contou em conversa com o Conselho Editorial da Revista E. O convidado deste mês da seção Encontros já publicou vários livros sobre o tema da loucura, entre eles O Tempo Não-Reconciliado (Perspectiva, 1998), A Vertigem por Um Fio (Iluminuras, 2000) e, mais recentemente, Vida Capital: Ensaios de Biopolítica (Iluminuras, 2003).
Há cerca de 20 anos, comecei a trabalhar no hospital-dia A Casa - trata-se de um local de tratamento destinado a pessoas portadoras de sofrimento psíquico, que substitui as instituições clássicas de internação psiquiátrica. Ali os pacientes passam das 9 às 17 horas, durante a semana. Eu já era formado em filosofia e queria fazer mestrado sobre o tema da loucura. Então comecei a freqüentar esse hospital-dia para me familiarizar minimamente com o assunto. Apesar de meu interesse acadêmico, acabei me envolvendo no trabalho terapêutico, e fiquei por lá mais de 15 anos, em atividades as mais diversas. Um grupo do qual eu participava resolveu, num certo momento, convidar dois diretores de teatro, Renato Cohen e Sérgio Penna, para uma experiência teatral. A partir daí, nasceu um grupo de teatro que cresceu tanto que se tornou autônomo em relação à própria instituição. É a Cia. Teatral Ueinzz. Nós já existimos há dez anos e fizemos várias apresentações aqui em São Paulo. Até no Sesc Pompéia fizemos uma temporada. A peça se chamava Gotham-SP, era sobre o Batman. Todos me perguntam de onde saiu esse nome, Ueinzz. Numa das primeiras reuniões que fizemos com os diretores, foi proposto um exercício sobre a comunicação entre os seres vivos, que se dá através da linguagem, da mímica, da gestualidade etc. O exercício, então, era testar como as pessoas mantinham entre si uma comunicação. Perguntaram a cada um dos pacientes como eles se comunicavam, ou em que línguas eles falavam. Um deles, que há anos se mantinha calado, respondeu: "Em alemão". Aí o questionaram, novamente, indagando qual palavra ele falava nessa língua. E ele disse: "Ueinzz". Perguntamos o que significava "ueinzz", e ele respondeu: "Ueinzz". Quer dizer, uma palavra que significa a si mesma, cujo sentido para nós é um enigma total. Depois disso, fizemos uma peça inteira em torno desse som. O roteiro básico era o seguinte: uma trupe perdida no deserto cruza vários obstáculos, entre eles um oráculo, a quem pergunta: "Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre babelina?". No espetáculo o ator que falava "alemão" era o oráculo, e devia responder: "Ueinzz". Esse é um som misterioso, um oráculo diz sempre um mistério, que cabe a quem o consulta interpretar. A partir de então, trabalhamos com esse som. Não tem um sentido pronto, é uma abertura de sentidos, são mil sentidos possíveis e nós fizemos disso o mote daquela peça. É uma analogia com as próprias pessoas tidas como loucas: elas dizem coisas que às vezes não entendemos, que rompem com o sentido original das palavras, dos gestos e das condutas, e nos colocam diante de um enigma. Em vez de achar que aquilo é puro ruído e que não serve para nada, poderíamos fazer o contrário: acolher aquela ruptura de sentido, dar-lhe um lugar, permitir que tivesse um efeito. Nessa peça, esse som foi trabalhado musicalmente. Quando o oráculo, um sujeito baixinho, gorduchinho e de bigode - parecido com um Buda turco -, respondia "ueinzz", esse som circulava pelo teatro, em círculos concêntricos, graças ao trabalho do compositor Wilson Sukorski. Isso tinha um poder de evocação de dimensões desconhecidas. O modo como esse grupo nasceu é muito significativo para nós. É o símbolo de como aquilo que não se entende - o não-sentido - pode servir de terreno para um projeto de expansão da vida, individual e coletivo.
Formas de vidaMeu envolvimento com essa atividade teatral não tem nada a ver com assistência social. Ocorre que pessoas como as que compõem esse grupo são desqualificadas pelas pessoas ditas normais, são alvo de um preconceito social, e em geral se considera que elas não fazem nada nem dizem coisa com coisa - trata-se de um consenso muito antigo sobre a loucura. Mas nossa aposta é que basta montar um dispositivo apropriado para que seja possível enxergar uma potência vital insuspeitada, ali onde todos viam impotência. Por vezes, presenciamos maneiras distintas de falar, de perceber, de sentir, de sonhar, gestos, posturas - eu chamaria isso tudo de formas de vida singulares - que são esquisitas para nós. Mas essas formas de vida, ditas minoritárias, têm uma inventividade própria. E colocam em xeque o nosso jeito, pretensamente normal e saudável. Nós nos achamos tão racionais, inteiros, saudáveis, que esse excesso de normalidade, no fundo, talvez seja a nossa doença. Essa nossa normalidade nos impede de sentir, de imaginar e de pensar muitas coisas. Não estou dizendo que os loucos são artistas inventivos e fabulosos, e que os normais são decrépitos e insossos. Mas há um desafio contemporâneo que consiste em abrir-se à alteridade. Essas diferenças todas que nos circundam, às vezes sob um modo muito sofrido, até de um certo colapso psíquico, nos questionam. O desafio não é só acolher esses modos "menores" de viver, e assim dialogar com a alteridade, seja sob qual forma ela se apresente, mas também perfurar uma certa blindagem que nos envolve e paralisa. Uma espécie de padronização que nos impede de reativar nossa própria imaginação e inventividade.Natural displicência Do ponto de vista estético, esse trabalho revela aspectos muito curiosos. Há muitos atores profissionais ou diretores de teatro que vêm nos assistir com grande interesse. Eles vêem um tipo de atuação que, às vezes, é o que eles mesmos estão buscando em suas pesquisas. Uma vez, o Lívio Tragtenberg veio tocar com a gente em uma peça, e tem um sujeito lá que canta Roberto Carlos. E canta com uma desafinação tamanha que é absolutamente comovente. Mas ele está tão convencido de sua musicalidade que sempre corrige os músicos que não o estão "acompanhando direito". Depois de uma apresentação, o Lívio disse: "Preciso levar esse cara a um show meu, porque ele é muito bom". Então, eu perguntei o que o havia interessado tanto. Ele respondeu: é que o sujeito "não está nem aí". Fiquei com essa frase na cabeça. Quando se entra em um palco, cada um assume um personagem. Eles também o fazem, com muito empenho, mas, ao mesmo tempo, é como se tratassem com uma certa displicência o papel que representam. O resultado é muito estranho, não tem nada de bonitinho. É como se fosse borrada a fronteira entre vida e arte - algo que a arte contemporânea tenta fazer a seu modo. Não é que nossos atores tenham um pensamento sobre esse tipo de arte, mas para eles essas fronteiras não são óbvias. Há, sim, uma ruptura de linguagem, que eles, a sua maneira, suscitam. Isso vai ao encontro de um certo ideal do teatro contemporâneo: romper com a narrativa, com o tempo linear, com a representação muito solene, tudo isso faz parte do ideário de qualquer diretor contemporâneo. Na nossa trupe, isso está em estado bruto, por isso muita gente de teatro se interessa por essa experiência. Além disso, eu acho os espetáculos hipnóticos, encantadores. O espectador entra em uma espécie de imersão sensorial muito esquisita. Porque ele não está tão preocupado em entender, mesmo porque não dá para entender direito. Ele se deixa levar por uma experiência que é de outra ordem, que não a da intelecção, do entendimento propriamente dito. É da ordem da afetação, as pessoas se deixam afetar de um modo muito forte. Clinicamente, isso não é uma terapia, então, não é para curar ninguém. Mas tenho certeza de que o teatro - como as artes em geral, no que elas oferecem de expressividade vital - é "terapêutico" para qualquer um, inclusive para nós. Eu diria que dificilmente alguém entra em uma experiência tão forte, rica e bonita sem que isso agregue a sua vida um tanto de tesão, de vitalidade, de alívio e sociabilidade, ou seja, tudo isso é absolutamente terapêutico.
Há cerca de 20 anos, comecei a trabalhar no hospital-dia A Casa - trata-se de um local de tratamento destinado a pessoas portadoras de sofrimento psíquico, que substitui as instituições clássicas de internação psiquiátrica. Ali os pacientes passam das 9 às 17 horas, durante a semana. Eu já era formado em filosofia e queria fazer mestrado sobre o tema da loucura. Então comecei a freqüentar esse hospital-dia para me familiarizar minimamente com o assunto. Apesar de meu interesse acadêmico, acabei me envolvendo no trabalho terapêutico, e fiquei por lá mais de 15 anos, em atividades as mais diversas. Um grupo do qual eu participava resolveu, num certo momento, convidar dois diretores de teatro, Renato Cohen e Sérgio Penna, para uma experiência teatral. A partir daí, nasceu um grupo de teatro que cresceu tanto que se tornou autônomo em relação à própria instituição. É a Cia. Teatral Ueinzz. Nós já existimos há dez anos e fizemos várias apresentações aqui em São Paulo. Até no Sesc Pompéia fizemos uma temporada. A peça se chamava Gotham-SP, era sobre o Batman. Todos me perguntam de onde saiu esse nome, Ueinzz. Numa das primeiras reuniões que fizemos com os diretores, foi proposto um exercício sobre a comunicação entre os seres vivos, que se dá através da linguagem, da mímica, da gestualidade etc. O exercício, então, era testar como as pessoas mantinham entre si uma comunicação. Perguntaram a cada um dos pacientes como eles se comunicavam, ou em que línguas eles falavam. Um deles, que há anos se mantinha calado, respondeu: "Em alemão". Aí o questionaram, novamente, indagando qual palavra ele falava nessa língua. E ele disse: "Ueinzz". Perguntamos o que significava "ueinzz", e ele respondeu: "Ueinzz". Quer dizer, uma palavra que significa a si mesma, cujo sentido para nós é um enigma total. Depois disso, fizemos uma peça inteira em torno desse som. O roteiro básico era o seguinte: uma trupe perdida no deserto cruza vários obstáculos, entre eles um oráculo, a quem pergunta: "Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre babelina?". No espetáculo o ator que falava "alemão" era o oráculo, e devia responder: "Ueinzz". Esse é um som misterioso, um oráculo diz sempre um mistério, que cabe a quem o consulta interpretar. A partir de então, trabalhamos com esse som. Não tem um sentido pronto, é uma abertura de sentidos, são mil sentidos possíveis e nós fizemos disso o mote daquela peça. É uma analogia com as próprias pessoas tidas como loucas: elas dizem coisas que às vezes não entendemos, que rompem com o sentido original das palavras, dos gestos e das condutas, e nos colocam diante de um enigma. Em vez de achar que aquilo é puro ruído e que não serve para nada, poderíamos fazer o contrário: acolher aquela ruptura de sentido, dar-lhe um lugar, permitir que tivesse um efeito. Nessa peça, esse som foi trabalhado musicalmente. Quando o oráculo, um sujeito baixinho, gorduchinho e de bigode - parecido com um Buda turco -, respondia "ueinzz", esse som circulava pelo teatro, em círculos concêntricos, graças ao trabalho do compositor Wilson Sukorski. Isso tinha um poder de evocação de dimensões desconhecidas. O modo como esse grupo nasceu é muito significativo para nós. É o símbolo de como aquilo que não se entende - o não-sentido - pode servir de terreno para um projeto de expansão da vida, individual e coletivo.
Formas de vidaMeu envolvimento com essa atividade teatral não tem nada a ver com assistência social. Ocorre que pessoas como as que compõem esse grupo são desqualificadas pelas pessoas ditas normais, são alvo de um preconceito social, e em geral se considera que elas não fazem nada nem dizem coisa com coisa - trata-se de um consenso muito antigo sobre a loucura. Mas nossa aposta é que basta montar um dispositivo apropriado para que seja possível enxergar uma potência vital insuspeitada, ali onde todos viam impotência. Por vezes, presenciamos maneiras distintas de falar, de perceber, de sentir, de sonhar, gestos, posturas - eu chamaria isso tudo de formas de vida singulares - que são esquisitas para nós. Mas essas formas de vida, ditas minoritárias, têm uma inventividade própria. E colocam em xeque o nosso jeito, pretensamente normal e saudável. Nós nos achamos tão racionais, inteiros, saudáveis, que esse excesso de normalidade, no fundo, talvez seja a nossa doença. Essa nossa normalidade nos impede de sentir, de imaginar e de pensar muitas coisas. Não estou dizendo que os loucos são artistas inventivos e fabulosos, e que os normais são decrépitos e insossos. Mas há um desafio contemporâneo que consiste em abrir-se à alteridade. Essas diferenças todas que nos circundam, às vezes sob um modo muito sofrido, até de um certo colapso psíquico, nos questionam. O desafio não é só acolher esses modos "menores" de viver, e assim dialogar com a alteridade, seja sob qual forma ela se apresente, mas também perfurar uma certa blindagem que nos envolve e paralisa. Uma espécie de padronização que nos impede de reativar nossa própria imaginação e inventividade.Natural displicência Do ponto de vista estético, esse trabalho revela aspectos muito curiosos. Há muitos atores profissionais ou diretores de teatro que vêm nos assistir com grande interesse. Eles vêem um tipo de atuação que, às vezes, é o que eles mesmos estão buscando em suas pesquisas. Uma vez, o Lívio Tragtenberg veio tocar com a gente em uma peça, e tem um sujeito lá que canta Roberto Carlos. E canta com uma desafinação tamanha que é absolutamente comovente. Mas ele está tão convencido de sua musicalidade que sempre corrige os músicos que não o estão "acompanhando direito". Depois de uma apresentação, o Lívio disse: "Preciso levar esse cara a um show meu, porque ele é muito bom". Então, eu perguntei o que o havia interessado tanto. Ele respondeu: é que o sujeito "não está nem aí". Fiquei com essa frase na cabeça. Quando se entra em um palco, cada um assume um personagem. Eles também o fazem, com muito empenho, mas, ao mesmo tempo, é como se tratassem com uma certa displicência o papel que representam. O resultado é muito estranho, não tem nada de bonitinho. É como se fosse borrada a fronteira entre vida e arte - algo que a arte contemporânea tenta fazer a seu modo. Não é que nossos atores tenham um pensamento sobre esse tipo de arte, mas para eles essas fronteiras não são óbvias. Há, sim, uma ruptura de linguagem, que eles, a sua maneira, suscitam. Isso vai ao encontro de um certo ideal do teatro contemporâneo: romper com a narrativa, com o tempo linear, com a representação muito solene, tudo isso faz parte do ideário de qualquer diretor contemporâneo. Na nossa trupe, isso está em estado bruto, por isso muita gente de teatro se interessa por essa experiência. Além disso, eu acho os espetáculos hipnóticos, encantadores. O espectador entra em uma espécie de imersão sensorial muito esquisita. Porque ele não está tão preocupado em entender, mesmo porque não dá para entender direito. Ele se deixa levar por uma experiência que é de outra ordem, que não a da intelecção, do entendimento propriamente dito. É da ordem da afetação, as pessoas se deixam afetar de um modo muito forte. Clinicamente, isso não é uma terapia, então, não é para curar ninguém. Mas tenho certeza de que o teatro - como as artes em geral, no que elas oferecem de expressividade vital - é "terapêutico" para qualquer um, inclusive para nós. Eu diria que dificilmente alguém entra em uma experiência tão forte, rica e bonita sem que isso agregue a sua vida um tanto de tesão, de vitalidade, de alívio e sociabilidade, ou seja, tudo isso é absolutamente terapêutico.
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Essa irá nos ajudar na oficina de teatro...
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