segunda-feira, 8 de março de 2010

Política e Subjetividade

Resenha do livro Freud e o Problema do Poder,
de León Rozitchner, SP, Editora Escuta, 1989, 189 páginas.

A relação do indivíduo com o mundo tem sido ao longo do tempo pensada por diferentes correntes teóricas. Os conceitos variam, é claro, não só dependendo do lugar teórico-político de onde falam as correntes, como também das diferentes implicações que têm com o objeto que produzem.

O freudomarxismo, através do filósofo (com prática clínica) Rozitchner, apresenta-nos a tese sobre a produção do sujeito e sua isomorfia com a estrutura social, na série de conferências proferidas no México em 1981, publicadas em Freud e o Problema do Poder (Ed. Escuta).

Aproximadamente dez anos antes, o autor escreveu Freud y los limites del individualismo burgués (Siglo Veintiuno), um dos mais significativos trabalhos realizados pelo movimento freudomarxista. Ao longo de 500 páginas, os artigos Mal Estar na Civilização e Psicologia das Massas e Análise do Ego, ambos componentes da chamada obra social de Freud, dão suporte às idéias do autor. Estas consistem em afirmar que "cada sujeito é também núcleo de verdade histórica" e que "o sistema de produção também é produtor do aparelho psíquico". Considera-se, nesta obra, que a teoria e a prática psicanalítica estariam entranhadas pela subjetividade "burguesa" e que uma leitura marxista de Freud necessariamente provocaria novas abordagens. A Psicanálise, assim, poderia evidenciar as estruturas objetivas do sistema de produção conceituadas por Marx, presentes como determinações na subjetividade dos sujeitos. Tais idéias serão expostas com clareza e síntese nas conferências ora editadas.

O freudomarxismo não teve no Brasil a repercussão que obteve na Argentina e em alguns outros países. Reich, Bernfeld, Fenichel e Fromm são alguns dos nomes associados a este movimento, embora a idéia de uma aproximação de psicanálise e marxismo tenha sido realizada de maneiras substancialmente distintas: desde uma utilização meramente formal dos discursos até a tentativa de uma construção teórico-prática. No campo da filosofia destacam-se Marcuse, Althusser e Sartre, que ressaltam tal articulação como importante para a compreensão dos processos de subjetivação.

Rozitchner estuda a problemática da repercussão na subjetividade das chamadas condições objetivas, e o que significam as condições subjetivas no desenvolvimento dos processos coletivos. Situa o problema do poder, portanto, na intrínseca relação co-determinante do indivíduo e do coletivo. Aponta que, em geral, estes dois pólos estiveram separados na análise das diferentes perspectivas teórico-políticas ou, quando muito, pensadas numa relação que estabeleceria pontos de contato mas garantiria suas formas próprias de produção.

O autor investiga primeiramente o processo de interiorização do poder na formação do sujeito. Sustenta a tese de que Édipo será a primeira "forma" subjetiva, e que só podemos entendê-lo através do Édipo coletivo/histórico. Encontra em Psicologia das Massas e Análise do Ego a evidência do poder individual debatendo-se na abertura para o poder coletivo. O drama do enfrentamento da criança com as normas surge sob a forma de um duelo; só a partir da negação do próprio desejo, poderá incluir-se na cultura. A "solução" do complexo de Édipo organiza uma consciência que não tem consciência de sua origem, posto que a ordem social oculta no sujeito o lugar onde se implanta. Esta "saída" infantil – saída em falso – resultaria em submissão à lei e interiorização de um poder despótico, que persistiria como forma matriz da organização individual dentro das instituições. Rozitchner diz que Freud "está fazendo uma psicologia como ciência histórica": "A história, em seu sentido amplo, começa em uma rebelião coletiva pela liberação dos submetidos". O autor retoma, também, a noção de riqueza para Marx, entendida como a produção de novas capacidades, poderes de produção e prazer. Esta noção seria desvirtuada na suposta universalidade objetiva de intercâmbio de mercadorias. O fundamento produtor dos indivíduos traria o sentido de cooperação, princípio também da ordem histórica. O conteúdo e as formas organizadoras do aparelho psíquico dependeriam da forma social que o produz. A recuperação deste poder expropriado, assim, seria fundamental para transformar qualquer processo histórico, através do retorno às fontes do poder social, onde o descobrimento do coletivo/individual, necessariamente, suscitaria a transformação pessoal dos sujeitos.

A formação de representações que constituem subjetivamente o campo da consciência e da subjetividade, diz Rozitchner, concede a possibilidade de nos referirmos a ela distanciando-nos e ocultando-nos da sua origem. Sustenta-se, assim, verdades construídas/produzidas, naturalizadas. Lembrando que a mercadoria, enquanto valor, é fetiche, posto que parece que o contém em si mesma, reafirma que é o poder despótico, seu lugar simbólico e o campo do imaginário que permitem sua instalação, sendo absolutamente fundamental tal desvendamento.

O autor aborda o tema, ainda, utilizando sua experiência no processo político argentino, concluindo que o "psicanalista não pode ser psicanalista e político, mas necessariamente um psicanalista-político".

Poderíamos considerar que a proposta de Rozitchner não tenta integrar os dois saberes em que se apóia, pelo menos no sentido de uma descaracterização epistemológica. Por outro lado, suas postulações "isomórficas" indicam uma busca de equivalência na co-determinação do psiquismo e do social.

Ao trabalhar a concepção de poder, Rozitchner fará algumas referências à obra de Foucault. Entretanto, se em alguns momentos trabalha com a idéia de corpo submetido e disciplinado onde a dominação se inscreve (referência à noção de poder disseminado), em outros, mantém a análise das relações de poder como estando localizada no aparelho de estado, imposta ao coletivo via identificações/ideologias. Ele atribui, então, poder "macro" ao coletivo e poder "micro" ao individual. Cabe esclarecer que a noção de micropoder em Foucault não relaciona poder com lugar.

Outras leituras podem sugerir diferentes análises sobre a questão da subjetividade. Guattari, por exemplo, considera que a psicanálise, mantendo a concepção de neutralidade, acaba por consolidar certas produções de subjetividade. Mais, que certas elaborações psicanalíticas seriam um modo de pensar uma das formações do inconsciente, conceito que a própria psicanálise produziu, mas jamais comporiam uma teoria geral sobre o inconsciente. Ao invés de tomar o conceito de ideologia, o substitui pela noção de produção de subjetividade, porque a questão para este autor não é apenas a de uma transmissão de significações por meio de enunciados, nem a adoção pura e simples de modelos de identidade ou identificações. Tratar-se-ia de sistemas de conexão direta entre diversas produções e a instância psíquica. Nesse sentido, tanto os marxistas como os psicanalistas são criticados, posto que as mutações da subjetividade não ocorreriam somente no registro ideológico ou edípico. Nem produção econômica, nem economia libidinal: Guattari enuncia a economia coletiva do desejo, atravessado por uma multiplicidade de produções que se revelariam em cada acontecimento, singularmente.

Certas questões ainda se colocam diante do freudomarxismo. Uma integração teórica, certamente, conduziria à descaracterização das teorias envolvidas. O que não é necessariamente um ultraje, ainda mais se a construção teórica que se segue é interessante e útil. Preservá-las, conservando suas conceituações, acabaria por manter lacunas, segundo o próprio freudomarxismo. Articulá-las, como pretende o autor, coloca um grave problema de teorização, ali onde a prática exige maior precisão; o que poderia explicar, sem necessariamente justificar, o abandono do freudomarxismo por parte de psicanalista que se afirmam marxista.

A noção de verdade, a perspectiva essencialista, os marcos interpretativos positivistas constituem parte de uma problemática complexa para aqueles que ressaltam as contribuições significativas do movimento freudomarxista.

A contribuição central deste último foi ter suscitado uma análise das instituições burguesas, do fascismo, e ter questionado a prática psicológica apolítica. Trouxe influências ainda, para que a partir de "maio de 68" não se pudesse ignorar com facilidade a política do desejo.

A importância da ordem histórico-social e sua relação com o inconsciente, ressaltada pelo freudomarxismo, a noção de subjetividade e a de transversalidade em Guattari, a redefinição de poder em Foucault, e ainda outras idéias, como os conceitos de implicação advindos da socio-análise e o de imaginário social em Castoriadis, apontam para uma "nova" clínica: a clínica onde as forças presentes no inconsciente constituem necessariamente um campo de análise mais amplo do que o da análise do inconsciente edípico. Uma teoria que ainda está para ser escrita, uma prática com muitas indagações.

Maria Beatriz de Sá Leitão
Psicanalista e Analista Institucional.
Co-autora dos livros:
Práticas Grupais (Campus, 19) e Grupos:
Teoria e Técnica (Graal, 19).

Regina D. Benevides de Barros
Professora do Departamento de Psicologia da UFF
e Analista Institucional.
Co-autora do livro: Análise Institucional no Brasil
(Ed. Espaço e Tempo).



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