terça-feira, 3 de maio de 2011

A DIFERENÇA COMO POSSIBILIDADE DE POTÊNCIA



Camila Bahia Leite

Hoje ao abrir a Folha de São Paulo(01/05/2011), me ative a uma reportagem que dizia: “Para comediantes, não há tabu no humor”, que dizia respeito à polêmica causada por um quadro na MTV intitulado“Casa dos Autistas”, que gerou todo um desconforto e críticas por parte doMovimento Pró-Autista e do Ministério Público Federal; além de incendiar e colocar em pauta uma discussão sobre a questão do respeito-desrespeito com relação à diferença. A reportagem desvela um contexto de situações onde a “diferença” ou aquele que é visto como “diferente” vira piada, lugar onde o imperfeito perde o lugar para o agenciamento donarcisismo-perfeição. Assim as diferenças são realçadas culturalmente. Aquele que é baixinho, magrelo, doente mental, deficiente físico, gordo, tímido, nerd,não pode ter seu lugar no mundo perfeito e padronizado... Quando se tornammotivo de piada, é isso que é dito, transmitido pela cultura “popular” massificada do culto ao perfeito, padronizado. Instala-se uma “des-educação” opressiva e estigmatizante, mostrando que o que é esperado e “politicamente correto” étudo aquilo que se encontra dentro da fronteira do padrão, do certo. E o que está fora de tais padrões, é “errado”, não deve ser aceito, valorizado. E isso não é desrespeito?

Há algumas semanas, o Brasil todo se emocionou com a tragédia ocorrida no Rio de Janeiro, onde um rapaz invade a escola fazendo dos alunos, alvo de seus tiros. Surgiu toda uma indagação sobre seele teria sido ou não vítima de bullying quando estudante dessa mesma escola.Fato que reativou inúmeras campanhas contra a violência e desarmamento em todo Brasil. Como se a violência e o assédio não fizessem parte do cotidiano de muitos locais, brincadeiras, e jocosidades dentro de nosso território de vida.Não só dentro do espaço íntimo, como também nos espaços coletivos das redesconstruídas ou destruídas no trabalho, na escola, na praça, na rua, na internet, na relação com o(s) outro(s). Como se o preconceito e a dificuldadede olhar o outro não fizessem parte do nosso cotidiano, como se pudéssemos apreciar, olhar, e viver o que a “sociedade” aprova como obelo-aceitável-padronizado. Mas a violência, o bullying, estão aí em todos os lugares, ditados pelas normatizações padronizadas e estriadas de um mundo narcisista produzido pelo consumo e pela mídia, protagonistas de um humor ácido e jocoso trazendo em si a anti-produção do preconceito e do desprezo ao que édiferente.

A reportagem lida implica-me, reportando a todos esses pensamentos, à vivência de quem trabalha com o preconceito no dia a dia, seja na vida ou no trabalho, em diversos espaços sociais. Fez-me pensar na ética que transmitimos em opiniões midiáticas ou não, na responsabilidade social das posturas que tomamos na vida, em como isso repercute no mundo, no nosso mundo, no mundo do outro, em como as aceitamos e multiplicamos ludicamente ou não. Com humor, ou sem humor.

A discussão pode tornar-se rica, quando se pensa sobre qual a apropriação que o humor pode fazer sobre a diferença, pois da mesma forma como denigre e esvazia a percepção do ser humano de direitos, pode ser veículo de informação útil, multiplicadora e responsável desfazendo osnós do preconceito no cotidiano social, potencializando uma rede de consciência crítica. E aí fica a pergunta: por que não fazê-lo em prol de uma produção de cultura lisa e humana, dentro de uma ética e estética construtiva, onde o que édiferente pode ser potencializado e transformado, pois aí vive o sentido davida, a criação. Não é repetindo a dureza inerte do padrão-estruturado-perfeito, pois se é perfeito, o que será criado? Para que? Isso é morte, não-vida. Tal qual no filme Cisne Negro (Darren Aronofsky, EUA, 2010), onde a busca da perfeição traz dor, sofrimento, loucura e conduz à morte.

Vida é o que se movimenta e traz o novo, o novo vem da diferença produzida pelo desejo-invenção e dentro da singularidade do ser humano. Cada um é um, e sendo um, é possível inventar sua própria forma de estar no mundo, compondo um campo heterogêneo e com possibilidades de criação e busca de contatos produtivos repletos de mais vida, formando novas redes, múltiplas. Citando aqui outro filme, Como Estrelas na Terra – Toda Criança é Especial (Aamir Khan, India, 2007), a estória do garoto Ishann, que traz uma nova forma de pensar a educação e as relações que a permeiam, construindo uma percepção singular do mundo infantil e sua imanência. É a transformação da realidade através da potencialização da diferença, é promoção de vida contagiante. Um garotinho que se sentia diferente, mas não sabia como ou por que, foi estigmatizado pela família incompreensiva, pela escola excludente e que felizmente encontrou alguém que se sentiu provocado e o percebeu como potencial criador-inventor e se fez ponte entre o preconceito-dor e a potência de vida-arte.

Fica o apelo, de ater-se criticamente ao que é produzido, de não cair na anti-produção, pela simples necessidade de produzir, acabando por produzir algo acultural, anti-etico eanti-estético. E que olhem para a diferença, não como quem olha para um “diferencial” que é ilusoriamente instituído pela competição mercadológica a se ver como um mero produto da dura-estriada anti-produção capitalista, que acaba por padronizar o tal diferencial. Mas olhem para a diferença, buscando no diferente, algo novo, que instigue a pensar, criar e vir a ser algo mais, para além do que já é vivido, consciente do que é vivido dentro de sua própria realidade desafiando suas virtualidades e atravessamentos.



Araxá, 01/05/2011

Um comentário:

  1. Camila, que texto belíssimo; sim a potência da diferença nos mobiliza a entender as dores mais sutis da vida que geram as grandes calamidades.
    Estava esperando o texto.
    Fica me devendo. Pois queria muito publicá-lo.
    Abraços com ternura e eterno carinho, Jorge

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