Estamira conta a história de uma mulher de 63 anos. que sofre de distúrbios mentais e vive e trabalha há mais de 20 anos, no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade, que recebe diariamente mais de oito mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Com um discurso eloqüente, filosófico e poético, a personagem central do documentário levanta de forma íntima questões de interesse global, como o destino do lixo produzido pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida.
Depoimentos
Espertos ao Contrário: Estamira e a Resistência às Capturas
Antonio Lancetti e Paulo Amarante
Dois fatos surpreendentes aconteceram recentemente. O primeiro é a ressurreição da velha psiquiatria centrada teórica e tecnicamente no hospital psiquiátrico, como mostra o movimento encabeçado pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria que, em recente artigo publicado pelo O Globo lançou um verdadeiro ataque contra o campo da saúde mental.
Não bastando 300 anos de equívocos e opróbrios ou as claras diretrizes da saúde pública mundial e da própria Organização Mundial de Saúde, que colocam a saúde mental nos trilhos da superação do modelo manicomial, temos de nos ocupar destas questões, totalmente arcaicas e superadas. Como em séculos passados, a ressentida crítica à Reforma Psiquiátrica, escuda-se no status médico da psiquiatria e em pueril conservadorismo, afirmando de saída que a psiquiatria não precisa de reformas. O tema é sujeito ainda a subterfúgios e confusões, dada a atual insegurança social provocada pelo aumento da violência.
O segundo fato, este sim um acontecimento é a chegada às salas de cinema de Estamira, filme de Marcos Prado. Obra prima da produção cultural brasileira, o premiadíssimo filme ilumina o referido debate, o pensamento a respeito da loucura, da sociedade e da própria existência.
Estamira é uma mulher louca que, brilhante em seu pensamento e na sua ação, escapa dos hospícios do Rio de Janeiro, onde sua mãe permanecia apodrecendo com outras internas no velho hospital Pedro II, não fosse ela própria a resgatá-la.
Ela vai para um lixão onde, fora do alcance do poder, inventa uma vida junto a pessoas boas, solidárias e companheiras. Constrói seu trabalho no lixo com amor, constrói seu barraco e uma família com a qual convive afetuosamente. Coloque-se leitor no lugar do interlocutor e perceba como um lixão é melhor que um hospício!
Por isso, ao entrarmos no debate sobre a saúde mental, lembramos as palavras de Estamira: não tem mais inocentes, tem espertos ao contrário”.
O presidente da ABP diz que os grandes “equívocos” da política de saúde mental foram asfixiar financeiramente os hospitais psiquiátricos e acabar com leitos públicos. Até quando ia ser permitida a existência desses locais sem fiscalização nem exigências sanitárias? E ainda há muitos deles que precisam ser desativados urgentemente. A substituição desses falsos hospitais, onde as pessoas adoecem, é uma obrigação sanitária e uma diretriz mundial. Até a Inglaterra de Margareth Tathcher investiu no projeto da saúde mental comunitária por ser mais eficaz e mais barato.
É por isso que as gestões de saúde mental de vários governos: Collor, Itamar Franco, FHC, Lula vêm substituindo os hospícios por sistemas complexos de cuidado, com emergências psiquiátricas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), moradias assistidas para pessoas que permaneceram muitos anos internadas, cooperativas de trabalho e outras iniciativas terapêuticas. Tudo em sintonia com as diretrizes modernas internacionais.
Alguns CAPS são pequenos e não atendem de noite e nos fins de semana. Outros, os denominados CAPS III, contam com camas e funcionam em regime de vinte e quatro horas. É claro que o Ministério da Saúde e as prefeituras deveriam priorizar os CAPS III.
Outra posição defendida pela ABP é a de que a internação psiquiátrica é similar à internação ortopédica ou cardiológica. Mais uma esperteza ao contrário: os procedimentos médicos denominados de alta complexidade são realizados em centros cirúrgicos e UTIs, como transplantes ou cirurgias cardíacas e os mais simples, como aleitamento materno, programas para hipertensos e diabéticos nas unidades básicas de saúde. Mesmo nos casos de maior gravidade procura-se abreviar as internações pelo risco de infecção hospitalar e pelo custo elevado das mesmas.
Na saúde mental é exatamente o contrário. Os procedimentos simplificados são realizados em hospitais e clínicas onde as pessoas são trancafiadas. O que muitas vezes é imprescindível nas situações em que há risco de morte, por exemplo. Os procedimentos complexos são realizados nos bairros, nos domicílios, nas unidades básicas de saúde e nos CAPS, onde as pessoas adoecem e se reabilitam.
Há diversos serviços hoje no Brasil onde profissionais do Programa de Saúde da Família associados aos profissionais de saúde mental cuidam de psicóticos graves e de famílias em situações violentas, onde agentes comunitários de saúde evitam mortes que aconteceriam por brigas e dívidas de drogas.
Pedimos desculpas a quem ainda não assistiu ao filme, mas somos obrigados a lembrar novamente. Diz Estamira, olhando de frente para todos nós, os que defendemos a Reforma Psiquiátrica e os que a combatem: vocês são copiadores, e também dopantes. Daí o recado enunciado para todos nós do mundo psi. É certo que muitas pessoas precisam de atendimento, mas de que atendimento estamos falando? Lembremos que muitas das pessoas com sofrimento mental grave são atendidas por pais de santos, pastores ou sacerdotes, talvez mais dos que nós atendemos e muitas vezes com maior êxito.
Estamira diz: “eu sou ruim, mas eu não sou perversa’’. Por isso, na hora de avançar no debate, lembremos da famosa frase que Michel Foucault deixou para os psicólogos afirmando que era mais fácil a loucura dar uma palavra sobre a psicologia que a psicologia sobre a loucura. A frase vale também para os psiquiatras que em sábia posição científica preocupam-se mais pelo que ainda não sabem do que pelo que já sabem. Eis um convite para a inclusão na multidisciplinariedade.
O segundo convite, fraternal, é a um debate construtivo. A saúde e a doença mental brasileiras precisam dele.
http://www.estamira.com.br/ (O Filme)
Depoimentos
Espertos ao Contrário: Estamira e a Resistência às Capturas
Antonio Lancetti e Paulo Amarante
Dois fatos surpreendentes aconteceram recentemente. O primeiro é a ressurreição da velha psiquiatria centrada teórica e tecnicamente no hospital psiquiátrico, como mostra o movimento encabeçado pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria que, em recente artigo publicado pelo O Globo lançou um verdadeiro ataque contra o campo da saúde mental.
Não bastando 300 anos de equívocos e opróbrios ou as claras diretrizes da saúde pública mundial e da própria Organização Mundial de Saúde, que colocam a saúde mental nos trilhos da superação do modelo manicomial, temos de nos ocupar destas questões, totalmente arcaicas e superadas. Como em séculos passados, a ressentida crítica à Reforma Psiquiátrica, escuda-se no status médico da psiquiatria e em pueril conservadorismo, afirmando de saída que a psiquiatria não precisa de reformas. O tema é sujeito ainda a subterfúgios e confusões, dada a atual insegurança social provocada pelo aumento da violência.
O segundo fato, este sim um acontecimento é a chegada às salas de cinema de Estamira, filme de Marcos Prado. Obra prima da produção cultural brasileira, o premiadíssimo filme ilumina o referido debate, o pensamento a respeito da loucura, da sociedade e da própria existência.
Estamira é uma mulher louca que, brilhante em seu pensamento e na sua ação, escapa dos hospícios do Rio de Janeiro, onde sua mãe permanecia apodrecendo com outras internas no velho hospital Pedro II, não fosse ela própria a resgatá-la.
Ela vai para um lixão onde, fora do alcance do poder, inventa uma vida junto a pessoas boas, solidárias e companheiras. Constrói seu trabalho no lixo com amor, constrói seu barraco e uma família com a qual convive afetuosamente. Coloque-se leitor no lugar do interlocutor e perceba como um lixão é melhor que um hospício!
Por isso, ao entrarmos no debate sobre a saúde mental, lembramos as palavras de Estamira: não tem mais inocentes, tem espertos ao contrário”.
O presidente da ABP diz que os grandes “equívocos” da política de saúde mental foram asfixiar financeiramente os hospitais psiquiátricos e acabar com leitos públicos. Até quando ia ser permitida a existência desses locais sem fiscalização nem exigências sanitárias? E ainda há muitos deles que precisam ser desativados urgentemente. A substituição desses falsos hospitais, onde as pessoas adoecem, é uma obrigação sanitária e uma diretriz mundial. Até a Inglaterra de Margareth Tathcher investiu no projeto da saúde mental comunitária por ser mais eficaz e mais barato.
É por isso que as gestões de saúde mental de vários governos: Collor, Itamar Franco, FHC, Lula vêm substituindo os hospícios por sistemas complexos de cuidado, com emergências psiquiátricas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), moradias assistidas para pessoas que permaneceram muitos anos internadas, cooperativas de trabalho e outras iniciativas terapêuticas. Tudo em sintonia com as diretrizes modernas internacionais.
Alguns CAPS são pequenos e não atendem de noite e nos fins de semana. Outros, os denominados CAPS III, contam com camas e funcionam em regime de vinte e quatro horas. É claro que o Ministério da Saúde e as prefeituras deveriam priorizar os CAPS III.
Outra posição defendida pela ABP é a de que a internação psiquiátrica é similar à internação ortopédica ou cardiológica. Mais uma esperteza ao contrário: os procedimentos médicos denominados de alta complexidade são realizados em centros cirúrgicos e UTIs, como transplantes ou cirurgias cardíacas e os mais simples, como aleitamento materno, programas para hipertensos e diabéticos nas unidades básicas de saúde. Mesmo nos casos de maior gravidade procura-se abreviar as internações pelo risco de infecção hospitalar e pelo custo elevado das mesmas.
Na saúde mental é exatamente o contrário. Os procedimentos simplificados são realizados em hospitais e clínicas onde as pessoas são trancafiadas. O que muitas vezes é imprescindível nas situações em que há risco de morte, por exemplo. Os procedimentos complexos são realizados nos bairros, nos domicílios, nas unidades básicas de saúde e nos CAPS, onde as pessoas adoecem e se reabilitam.
Há diversos serviços hoje no Brasil onde profissionais do Programa de Saúde da Família associados aos profissionais de saúde mental cuidam de psicóticos graves e de famílias em situações violentas, onde agentes comunitários de saúde evitam mortes que aconteceriam por brigas e dívidas de drogas.
Pedimos desculpas a quem ainda não assistiu ao filme, mas somos obrigados a lembrar novamente. Diz Estamira, olhando de frente para todos nós, os que defendemos a Reforma Psiquiátrica e os que a combatem: vocês são copiadores, e também dopantes. Daí o recado enunciado para todos nós do mundo psi. É certo que muitas pessoas precisam de atendimento, mas de que atendimento estamos falando? Lembremos que muitas das pessoas com sofrimento mental grave são atendidas por pais de santos, pastores ou sacerdotes, talvez mais dos que nós atendemos e muitas vezes com maior êxito.
Estamira diz: “eu sou ruim, mas eu não sou perversa’’. Por isso, na hora de avançar no debate, lembremos da famosa frase que Michel Foucault deixou para os psicólogos afirmando que era mais fácil a loucura dar uma palavra sobre a psicologia que a psicologia sobre a loucura. A frase vale também para os psiquiatras que em sábia posição científica preocupam-se mais pelo que ainda não sabem do que pelo que já sabem. Eis um convite para a inclusão na multidisciplinariedade.
O segundo convite, fraternal, é a um debate construtivo. A saúde e a doença mental brasileiras precisam dele.
http://www.estamira.com.br/ (O Filme)
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