quinta-feira, 26 de março de 2009

Vínculo e Responsabilização do Cuidado

Assim como o acolhimento não pode reduzir-se apenas a uma administração mais ou menos eficiente da chegada das pessoas aos serviços, o vínculo e a responsabilização de cuidados não se confundem meramente com o conceito de adscrição de clientela.
A adscrição de clientela é um operador importante em saúde pública: define uma população, que habita determinada área de um território dado, estando sob a responsabilidade dos cuidados de uma determinada equipe de um serviço de Saúde. No entanto, importa, antes de tudo, definirmos qual a responsabilidade que está em jogo, quando assumimos esse cuidado.
Inicialmente, é preciso considerar bem a noção de território, ou seja: não apenas um espaço geográfico delimitado, mas toda uma diversidade de situações pessoais, familiares, sociais, muitas vezes atravessada por duras desigualdades: uma favela e um bairro de classe média, ainda que pertençam ao mesmo território, exigem atenção e cuidados diferenciados, de acordo com as dificuldades socioeconômicas, de acesso à cultura e ao lazer, de infra-estrutura sanitária, etc, que encontramos num e noutro. Para conhecer e considerar a diversidade, não bastam os mapas e as estatísticas: o território só adquire verdadeira realidade aos olhos dos trabalhadores de Saúde quando transitam por ele, em contato com suas ruas, seus espaços, seu cotidiano. Apenas assim se constatam os problemas e se descobrem as potencialidades de uma região.
Se assim é no que diz respeito aos aspectos coletivos, assim deve ser também no cuidado prestado a cada um dos nossos pacientes. É fácil admitir que a gestante, a criança, o hipertenso, o portador de sofrimento mental, e assim por diante, beneficiam-se do contato constante com uma equipe de profissionais que já os conhece e os acompanha. Contudo, isto pouco valerá, se o contato paciente-profissional limita-se a verificar e a repetir condutas padronizadas.
Todo cuidado é uma espécie de artesanato: não pode ser feito em série. Trata-se de um laço singular que se tece um a um, sem exceção.
No que diz respeito aos portadores de sofrimento mental demonstra-se de forma muito clara a aplicação e a validade dos pontos destacados aqui. Diferentemente dos demais, esses pacientes muitas vezes não pedem ajuda, e até mesmo parecem recusá-la; contudo, ao contrário do que se pensa, são particularmente sensíveis ao vínculo e ao cuidado.
Afinal, os problemas que os perturbam relacionam-se via de regra a um impasse na relação com outras pessoas – seja o chefe ou o marido, a mãe ou o vizinho. Portanto, esses problemas encontram alívio e saídas possíveis, quando podem endereçar-se a profissionais acolhedores em sua escuta, e a responsáveis por sua vinculação e acompanhamento.

Algumas considerações sobre o vínculo e a responsabilização de cuidados

 Quando se cuida de alguém, cuida-se incondicionalmente. Assim como não se nega atendimento a um diabético porque não seguiu a dieta, não se pode deixar de atender a um alcoólatra porque ele não parou de beber; igualmente, não se dá “alta administrativa” a um paciente porque seu comportamento foi inadequado. Para cuidar das pessoas de trato mais difícil, é preciso criar estratégias, e não impor condições.

 Quando um usuário age de forma que prejudica seu tratamento ou o tratamento dos outros, há muitas maneiras de dizer e de mostrar isto a ele; contudo, não existe maneira alguma de recusar cuidados que não resulte em abandono. Responsabilidade exige firmeza, mas não é sinônimo de rigidez: pelo contrário, quanto o trabalhador se mostra rígido, mais pretexto encontra para deixar de exercer funções que lhe cabem.

 Se o vínculo e a responsabilização são laços que se fazem com cada um, eles adquirem firmeza crescente quando se entrelaçam uns aos outros. Assim se constrói a dimensão coletiva da solidariedade e da confiança na relação entre a equipe, os usuários e a comunidade.

 A qualidade de certas atividades das unidades básicas, como os grupos de gestantes, diabéticos, etc, é muito diferente, dependendo desta relação. Quando é conduzido de forma autoritária, um grupo de hipertensos não passa de uma reunião aborrecida, da qual todos querem sair o mais depressa possível; quando é flexível, pode tornar-se um espaço agradável de troca de experiências e de informações.

 Sobretudo, a dimensão coletiva da relação equipe-usuários não se faz apenas nestas atividades grupais de objetivo técnico: requer a participação efetiva dos usuários na avaliação e no acompanhamento do trabalho da equipe. As comissões locais de Saúde são um espaço importante para isto, mas muitos outros podem ser criados no cotidiano do serviço. Assembléias nos CAPS, reuniões no centro de saúde, comissões de usuários de Saúde Mental, são atividades de grande importância. Conhecendo o funcionamento do serviço, seus avanços e seus problemas, os usuários tornam-se não apenas pacientes, mas parceiros responsáveis da sua equipe.

A ATUAÇÃO EM EQUIPE

Não se pode definir uma equipe como um aglomerado de trabalhadores, na qual cada um deles exerce apenas a sua função profissional específica. As identidades profissionais não podem servir de pretexto para o apego burocrático a uma função. Se é verdade que compete ao médico prescrever, o que o impede de levar os usuários a um passeio? Se a psicóloga deve responder por atendimentos individuais, por que não pode coordenar uma oficina? Se for atribuição da enfermeira supervisionar o trabalho dos auxiliares de enfermagem, por que não pode escutar e acompanhar seus pacientes? Se o porteiro deve zelar pelos que entram e saem, não lhe cabe também fazer companhia a quem fica?
Também não podemos entender as equipes apenas como uma forma de dividir o trabalho, em que cada um faz “a sua parte”, sem necessitar preocupar-se com o produto total. Uma equipe de Saúde deve compor-se de profissionais de formações diferentes, assegurando assim a diversidade de suas feições e a troca de suas experiências. Naturalmente, as especificidades das diferentes profissões devem ser respeitadas. Contudo, o que caracteriza realmente o trabalho em equipe é a capacidade de participar coletivamente da construção de um projeto comum de trabalho, num processo de comunicação que propicie as trocas. Assim, não nos limitamos a aplicar conhecimentos técnicos, aliás, indispensáveis; aprendemos a atuar coletivamente, sem nos refugiarmos em interesses corporativos ou individuais.

Algumas considerações sobre o trabalho em equipe

 Um aspecto importante do trabalho em equipe é a sua dimensão interdisciplinar. Saúde não é um conceito que se possa enunciar a partir de uma única disciplina; pelo contrário, é delineado a partir de conhecimentos da Biologia, das Ciências Humanas, da Epidemiologia, e outros. Portanto, trabalhar com saúde, na amplitude que o termo requer, traz a necessidade de examinar esse objeto a partir de diferentes conhecimentos e práticas – não apenas internos à equipe de Saúde, como os saberes da Enfermagem, da Psicologia, da Medicina, etc – mas também aqueles de outros campos.

 Assim, a equipe não pode organizar-se em torno do saber de uma determinada categoria profissional. Na Saúde, tradicionalmente, este saber era aquele do médico: em torno dele, os outros profissionais tinham meramente um papel auxiliar. Contudo, nessa nova lógica de cuidados, nenhum saber ocupa o centro.

 Isto se torna ainda mais evidente na Saúde Mental: a grande maioria das formas de sofrimento mental que atendemos não têm causa orgânica, nos mesmos moldes de um diabetes ou uma pneumonia. Assim, o próprio diagnóstico e a condução do tratamento podem ser feitos tanto pelo psicólogo, pelo médico, pelo terapeuta ocupacional – apenas a prescrição de medicamentos sendo atribuição exclusiva do médico.

 Uma equipe mínima de Saúde Mental em unidade básica de Saúde deve compor-se pelo menos de um psicólogo e um psiquiatra – evidentemente, trabalhando em parceria com o generalista, o assistente social, o auxiliar de enfermagem, entre outros.

 Serviços específicos de Saúde Mental, de maior complexidade técnica, como os CAPS, têm equipes de composição mais diversificada: psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, além, é claro, do pessoal de enfermagem e de apoio.

 Seja nos serviços de Saúde ou nos serviços específicos da Saúde Mental, o trabalho em equipe não consiste apenas nessa troca de saberes e de experiências; é também um exercício de democratização da relação entre os trabalhadores, conferindo a todos eles, seja qual for sua formação profissional, direito de voz e de voto.

 Isto não resulta apenas em idênticos direitos para todos, mas também em idêntico grau de responsabilidade – seja diante do usuário, seja diante do projeto de trabalho. Essa responsabilidade implica em participar tanto dos cuidados quanto das decisões – seja naquelas que dizem respeito ao cotidiano do serviço de Saúde, seja no que concerne à organização do trabalho, conforme os princípios definidos pelo Projeto de Saúde Mental de um município, região ou Estado.

 Finalmente, cabe lembrar que uma equipe não trabalha para si mesma, e sim para atender, da melhor maneira possível, sua clientela!

A ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE MENTAL

A organização do processo de trabalho deve incorporar as noções básicas da dimensão cuidadora na produção de Saúde que examinamos até aqui. Deve ainda, no que diz respeito à Saúde Mental, organizar-se segundo os princípios da Reforma Psiquiátrica que buscamos, vistos no capítulo anterior. Esses princípios não são adendos ao projeto clínico, e sim partes constitutivas do mesmo, que devem estar inseridas nas ações concretas planejadas e desenvolvidas pelos profissionais.

Os primeiros passos do processo de trabalho: a chegada do paciente ao serviço de Saúde

 O acolhimento, quando na unidade básica, pode ser feito por qualquer profissional de saúde, de preferência um técnico de nível superior. Nos CAPS, que atendem casos de maior complexidade, é sempre feito por um profissional de Saúde Mental.

 Após a primeira abordagem, o técnico que acolheu poderá necessitar do apoio imediato de um outro profissional, ou tomar ele próprio as primeiras decisões quanto às condutas a serem adotadas.

 De qualquer forma, há algumas questões que devem ser avaliadas nesta etapa. A primeira delas: independentemente do diagnóstico, este usuário apresenta problemas psíquicos cuja gravidade justifica um encaminhamento para a Saúde Mental? Naturalmente, o diagnóstico deve ser levado em conta: portadores de neuroses e psicoses graves são a clientela prioritária. Contudo, considera-se também a situação e as circunstâncias: por exemplo, o forte abalo emocional após uma perda ou situação de vida muito difícil pode requerer atendimento da Saúde Mental, mesmo em se tratando de uma pessoa mais tranqüila; da mesma forma, alguém que passou por um episódio psicótico grave, porém se encontra clinicamente estável, e mantém laços sociofamiliares bem estabelecidos, pode ser acompanhado pela equipe do PSF.

 O profissional que fez o acolhimento pode a qualquer momento recorrer a um colega para discutir o caso: por exemplo, o enfermeiro pode discutir com o psiquiatra se há ou não necessidade de medicação; o generalista pode discutir com a psicóloga se há ou não indicação para o tratamento específico em Saúde Mental.

 Caso se decida pelo encaminhamento à Saúde Mental, seguem-se os próximos passos.

Encaminhamento do paciente à Saúde Mental: próximos passos

 É preciso, inicialmente, avaliar qual a premência desse atendimento: Imediatamente? Dentro de alguns dias ou semanas? E, ainda: em qual serviço o atendimento deve ser feito: na unidade básica, no CAPS? Esse segundo ponto, naturalmente, depende não só das características do caso, mas dos recursos com que conta o município.

 Avaliou-se, pois, quando e onde o usuário deve ser atendido. O próximo passo é encaminhá-lo para a equipe de Saúde Mental que o irá acompanhar. Esse encaminhamento deve ser feito, sempre que possível, por meio de contato pessoal ou de telefonema; além disso, é sempre necessário um relatório especificando por que e para quando se solicita o atendimento.

 Chegando à equipe de Saúde Mental, esteja ela na unidade básica, no CAPS, no ambulatório especializado, etc, o paciente será atendido por um profissional de nível superior desta equipe. Independentemente de sua formação – psicólogo, psiquiatra, assistente social, etc – este será o técnico de referência8 do paciente. A expressão “técnico de referência”, utilizada em muitos CAPS, parece adequada para denominar o profissional que exerce as atribuições definidas neste parágrafo; portanto, será utilizada nesse sentido nessa Linha-Guia. A função do técnico de referência será mais bem especificada em 8.2 O projeto terapeûtico: a direção do tratamento.

 É da alçada do técnico de referência estabelecer e sustentar o vínculo com o paciente, traçar as linhas de seu projeto terapêutico individual, definir com ele a freqüência dos atendimentos e do comparecimento ao serviço, fazer os contatos com a família, e com outras pessoas do seu espaço social, sempre quando necessário.

 Os recursos terapêuticos indicados pelo técnico de referência podem também ser disponibilizados por meio de outros profissionais, como: prescrição médica para o uso de medicamentos, oficinas de arte conduzidas por agentes culturais, etc. Pode ainda haver dificuldades que requerem uma discussão de caso com os colegas da equipe ou a supervisão de um técnico mais experiente. O importante é que esses recursos não sejam utilizados de forma isolada, e sim façam parte do projeto terapêutico conduzido pelo técnico de referência, contribuindo assim para a melhora do usuário.

 Num determinado momento do tratamento, pode ser necessária a transferência do usuário para um serviço mais adequado ao seu caso: por exemplo, um paciente até então acompanhado na unidade básica entra em uma crise que requer cuidados intensivos no CAPS; ou, pelo contrário, um outro, seguido no CAPS, já se encontra em condições de ser atendido na unidade básica. Também nesses casos, o encaminhamento deve ser feito de forma verbal ou por escrito, evitando a perda dos avanços obtidos até então.

 Não se deve perder de vista que o paciente em atendimento pela equipe de Saúde Mental, seja no CAPS ou na unidade básica freqüentemente se beneficia da utilização simultânea de um outro tipo de equipamento, ou da realização de atividades que o ajudem na reabilitação psicossocial. Por exemplo, freqüentar um Centro de Convivência, participar de um Núcleo de Produção Solidária, atuar numa Associação de Usuários e de Familiares de Saúde Mental, e assim por diante. A equipe de Saúde Mental, portanto, deve reconhecer a importância desses recursos, promovendo sua criação e incentivando os usuários a procurá-los.
Linha Guia de Saúde Mental

Nenhum comentário:

Postar um comentário