Ao longo de suas oito edições, o Seminário do Projeto Integralidade contou, além das exposições dos pesquisadores do LAPPIS, com a participação de autoridades e convidados relacionados aos mais variados âmbitos da Saúde Coletiva. A edição de 2009 não será diferente. Coordenador da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (PNH – MS) desde 2007, Dario Pasche confirmou sua participação na mesa redonda “Medicalização na Saúde: despersonalização, desumanização e utilitarismo? Afinal, do que se trata?”, que será apresentada na manhã do segundo dia do seminário. Em entrevista exclusiva ao BoletIN, Pasche falou, entre outros assuntos, sobre a importância de retomar o debate sobre a natureza das práticas de saúde e interrogar sobre o cotidiano, abrindo a possibilidade de se recriar relações clínicas e de poder nas organizações de saúde. “O debate proposto pelo seminário sobre o ‘cotidiano e as razões do cuidado’ é fundamental. Uma agenda importante para a terceira década do SUS é inovar nos modos de gestão e modos de cuidado”.
BoletIN: Como coordenador da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (HumanizaSUS), qual a importância da discussão da Medicalização em Saúde?
Dario Pasche: Este debate é importante e estratégico, e isto se deve a duas questões principais: em primeiro lugar, porque a agenda do SUS está quase toda direcionada para questões macropolíticas, sobretudo para o financiamento, que, embora seja estratégico, não deveria redundar em toda agenda e tarefa política do SUS, sendo fundamental retomar o debate sobre a natureza das práticas de saúde; em segundo lugar, porque se não formos capazes de “incrementar” o debate sobre a micropolítica no SUS, portanto interrogando sobre a sustentação das práticas de saúde, corremos o risco de avançar no desenvolvimento de um sistema universal sem necessariamente ofertar práticas que ampliem a autonomia das pessoas no cuidado de si.
BoletIN: Que temas/discussões pretende levar ao IX Seminário do Projeto Integralidade?
Dario Pasche: Minhas discussões vão se centrar em dois pontos, os quais se comunicam fortemente. O primeiro vai no sentido de que o combate ativo à biopolítica - às formas de controle e regulação de necessidades de saúde no contexto do capitalismo - passa por um duplo movimento que deveria articular ações macro e micropolíticas, ou seja, deveria combinar agendas no plano societal e no plano das interações e relações entre trabalhadores, usuários e gestores. O segundo ponto de discussão é que esta ação micropolítica, para ser efetivamente produtora de mudanças, deveria interferir na dinâmica de organização das instituições de saúde, na perspectiva de democratizá-las. A democratização das instituições e das relações se reveste de uma intenção de desprivatização dos espaços de gestão e da clínica, o que significa dar passagem para as diferenças dos variados sujeitos para compor planos comuns. Assim, temos uma agenda cujo campo de luta são as formas de gestão das organizações de saúde, as quais interferem de forma decisiva nas práticas clínicas.
BoletIN: Quais suas expectativas em relação ao Seminário?
Dario Pasche: O debate proposto pelo seminário sobre o “cotidiano e as razões do cuidado” é fundamental. É possível argumentar que o SUS, como política pública, tem conseguido ampliar o acesso e estendido sua rede, aumentando as ofertas de ações e serviços. Uma agenda importante para a terceira década do SUS é inovar nos modos de gestão e modos de cuidado. Isto exige, necessariamente, interrogar sobre o cotidiano, sobre as práticas de saúde, abrindo a possibilidade de se recriar relações clínicas e de poder nas organizações de saúde. Esta agenda é tão ou mais complexa que a luta por criar e sustentar o SUS como política pública, pois o desafio agora se desloca para um campo de luta que exige experimentar e inovar no plano terreno da ação de cada equipe, de cada território. Agora é cuidar de cada um dos espaços singulares que criamos; este cuidar exige ação crítica, mas uma crítica que seja generosa, capaz de reconhecer esforços e insuficiências. Ou seja, exige não uma ação normativa - o “deve fazer” - mas a oferta e experimentação de um “como fazer”. A extensividade da rede SUS vai exigir a criação de estratégias ainda pouco frequentes, entre as quais o apoio às equipes, função-atividade de fazer-junto, utilizando-se do saber-fazer das equipes e, ao mesmo tempo, do aporte de expertises de outros trabalhadores da saúde comprometidos com a construção de práticas de saúde que sejam mais condizentes com as necessidades de saúde, e processos de gestão do trabalho que dignifiquem o trabalhador. Tarefas complexas, com certeza.
BoletIN: O título de sua tese de Doutorado foi "Gestão e sujetividade em saúde", finalizada em 2003. Seis anos depois, o que mudou nessa questão?
Dario Pasche: Minha tese se inscreve em um ambiente acadêmico de crítica e construção de alternativas aos modos de gestão burocratizados e pouco capazes de produzir mudanças nas formas de governar as instituições de saúde e nos modos de cuidar. O argumento central é que não se mudam práticas sem se alterar os modos de gestão, aquilo que a PNH vai tomar como o princípio da inseparabilidade entre gestão e atenção à saúde. Inovar no campo da gestão implica no enfrentamento de uma cultura organizacional muito enraizada que tem como matriz o taylorismo, cuja principal marca e característica é o autoritarismo. Assim, criamos e reproduzimos relações e instituições autoritárias, centralizadoras e excludentes. Inovar, então, não teria como perspectiva aprimorar a gestão taylorista, mas criar um novo paradigma para a gestão em saúde. Gastão Campos, meu orientador, foi pioneiro nestas discussões na saúde coletiva e produziu um método - o Método da Roda - que tem inspirado muita experimentação em toda a rede SUS. Nesta última década, o SUS avançou muito neste debate e em experiências que tomaram por tarefa recriar organizações de saúde. Se antes contávamos nos dedos onde havia inovações, atualmente elas estão presentes nos quatro cantos deste país. Temas e conceitos emergentes foram incorporados com a subjetividade, a produção de sujeitos, a clínica ampliada, a cogestão, as relações de poder, afeto e saber entre as pessoas, entre outros. Comprovando a velha frase de que não há prática revolucionária sem uma teoria revolucionária, creio que no SUS a gente vem criando e incorporando novos conceitos que têm permitido a emergência de novas experimentações, muitas delas revolucionando o cotidiano das práticas.
BoletIN: Comente a importância da humanização do SUS no âmbito da Integralidade.
Dario Pasche: A integralidade é uma diretriz do SUS, está destacada na base jurídico-legal de nosso sistema de saúde como imperativo-normativo - ou seja, está no plano do “deve ser”. O SUS deve ofertar práticas integrais. Uma questão que se impõe a partir desta definição é como fazer para que a integralidade se transforme em prática social. A humanização informa certo modo de fazer da integralidade (entre outros) um componente orientador e expressão do SUS. Este modo de fazer é o Método da Tríplice Inclusão. Incluir implica em assumir radicalmente que as mudanças necessárias no SUS serão mais estáveis e melhor assumidas por gestores, trabalhadores e usuários se forem construídas por eles e não para eles. Por exemplo: como fazer para que determinada equipe assuma a integralidade como princípio orientador de suas práticas? Haveria que se combinar ofertas de gestão com a incorporação de determinadas tecnologias de cuidado que fossem experimentadas em cada equipe para que elas tenham sentido em seu cotidiano. Isto pode ser feito por normatividade (portarias, regramentos administrativos, etc.), mas terá efeito prático se for construído com a equipe desde suas práticas cotidianas, então recriadas. A humanização, em seu modo de fazer inclusivo, oferta ainda diretrizes, que são orientações ético-político-clínicas que dão suporte às práticas inclusivas. Entre elas a clínica ampliada, o acolhimento, a gestão democrática, a garantia de direitos dos usuários e a valorização do trabalhador. Estas orientações experimentadas em dispositivos (formas concretas de trabalho) criam possibilidades reais para que a integralidade possa se expressar como prática concreta, como efeito de ações de saúde construídas com trabalhadores, com equipes.
Dario Pasche
Nenhum comentário:
Postar um comentário