terça-feira, 1 de setembro de 2009

Alguns comentários sobre o texto de Freud: “Observações sobre o amor transferencial”

Alguns comentários sobre o texto de Freud: “Observações sobre o amor transferencial”

Nesse texto, Freud nos diz logo de início que a maior das dificuldades encontrada pelo “principiante em psicanálise” consiste no manejo da transferência. Para ilustrar tal dificuldade, nos dá um exemplo: aquele das analisandas do sexo feminino que se apaixonam declaradamente por um analista do sexo masculino. Trata-se de um exemplo curioso, por que não é tão freqüente, afinal. Obviamente, nem sempre os sexos de analista e analisando correspondem a esta relação; ademais, apenas eventualmente o amor de transferência atinge de forma ostensiva tais proporções e intensidade. No entanto, embora incomum, o exemplo é paradigmático: ele parece ilustrar algo que se passa, seja sob forma evidente ou oculta, em todo laço transferencial. Para tentar entender isto, vamos examinar mais detidamente o exemplo escolhido por Freud. “O que tenho em mente é o caso em que uma paciente demonstra, mediante indicações inequívocas, ou declara abertamente, que se apaixonou, como qualquer mulher mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando”. Trata-se, portanto, de um problema amoroso. Ora, em nossa cultura, observa Freud, “as coisas que se relacionam com o amor são incomensuráveis; acham-se, por assim dizer, escritas numa página especial em que nenhum outro texto é tolerado” (grifo nosso). Esta observação, por si só, é muito interessante. De fato, numa cultura que oferece um lugar de destaque à relação amorosa a dois, ao romance - e, no tempo em que escreve Freud, a esta relação entre homem e mulher -, o amor é uma espécie de terreno fechado à investigação, um texto que não se pode discutir senão nos seus próprios termos. Ora, à psicanálise cumpre, justamente, interrogar este texto, de uma forma não empreendida até então. Todos concordamos em que o amor fala muito alto na boca de uma mulher apaixonada. Ora, quando este amor se dirige ao analista, ele não pode se furtar a interpelar o que fala no amor, para além do estridente barulho que faz. Aparentemente, continua Freud, se a paciente está apaixonada pelo analista, há três desfechos possíveis: ou bem se casam, ou bem se tornam amantes, ou bem se separam. Contudo, todos os três têm algo em comum: a interrupção do trabalho analítico, que pareceria incompatível com a manifestação do sentimento amoroso. Diante disso, Freud observa: “É claro que um psicanalista tem de encarar as coisas de um ponto de vista diferente”. A interrupção do tratamento acarretaria a necessidade de começar um outro - e, sintomaticamente, veremos que no novo tratamento a situação se repete, a paciente mais uma vez se apaixona, e assim sucessivamente. Isto nos mostra pelo menos três coisas. Primeiro: este amor tem algo de uma repetição, ele se faz “em série”. Segundo: ele pode tomar pessoas diferentes por objeto. Terceiro: tratamento algum chegará a seu termo se recuar diante da paixão amorosa. O parecer de Freud, portanto, é de que o tratamento deve continuar. Para tal, o analista deve manter-se alerta. Não pode, por um lado, deixar-se tomar pela vaidade. “Ele deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica (grifo nosso), e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa”. Portanto, embora chegue a ser constrangedor para um homem recusar a paixão de uma mulher, aquele que se coloca no lugar do analista pode e deve fazê-lo. Por outro lado, o analista não pode tampouco corresponder a este sentimento; para o avanço do trabalho, é necessário mantê-lo como um amor não realizado. Não se trata, portanto, nem de estimular nem exorcizar este amor: trata-se, repetimos, de convidá-lo a falar. Seu surgimento não é um obstáculo à psicanálise, mas uma condição para que ela se realize. Evidentemente, dificuldades se colocam. A paciente, que antes fora dócil e interessada no tratamento, agora já não se importa com ele; abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção: tudo o que lhe interessa é ter o seu amor retribuído. Assim se expressa Freud, numa bela e forte passagem: “Há uma completa mudança de cena; é como se uma peça de fingimento houvesse sido interrompida pela súbita irrupção da realidade – como quando, por exemplo, um grito de incêndio se ergue durante uma representação teatral”. A realidade do amor parece sobrepor-se ao artifício da análise, colocando-a em segundo plano. Ora, se não nos deixamos assustar pelo “grito de incêndio”, devemos perguntar-nos em que circunstâncias surge. E então veremos, diz Freud, que não se grita num momento qualquer, e sim justamente quando a análise chega num ponto em que se aproxima de “um fragmento particularmente aflitivo e pesadamente reprimido” da história da vida da paciente. Neste sentido, o amor transferencial é a manifestação de uma resistência, que age como agent provocateur: “Ela [a resistência] intensifica o estado amoroso da paciente e exagera sua disposição à rendição sexual, a fim de justificar ainda mais enfaticamente o funcionamento da repressão”. Noutros termos, é como se a a paciente nos dissesse: “Você está vendo? Não podemos tocar nesses assuntos; quando é tocada, a minha sexualidade se manifesta perigosamente”. Ademais, o amor, entrando em cena nesse momento, é uma forma de desafiar o analista: a paciente parece querer destituí-lo do lugar que ocupa para colocá-lo no lugar de amante. Ora, ao manifestar-se dessa forma, a resistência, como de costume, está a serviço da repressão, mas também do retorno do reprimido: alguma coisa que não estava aparecendo antes se expressa agora. Portanto, é inútil e insensato instigá-la a suprimir seus instintos, logo no momento em que ela admite, através da própria transferência erótica, que esses instintos falam, e falam muito alto. A este propósito, numa outra passagem muito bela, Freud nos diz: “Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta”. Não, aqui o amor não será tratado como uma página à parte; aqui, o amor faz parte, seu texto se imbrica necessariamente ao texto da experiência analítica. O “grito de incêndio” não nos deve apavorar, nem podemos impor silêncio ao “espírito” que invocamos. Este amor, como já foi dito, deve manter-se não realizado: se os avanços da paciente fossem retribuídos, isso não traria qualquer avanço para o tratamento. A correspondência amorosa, nessa situação, apenas levaria ao acting out, ou seja, a “repetir na vida real o que deveria apenas ser lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos”. Não se trata, portanto, nem de satisfazer nem de suprimir o anseio amoroso. O que fazer, então? Aqui, o analista deve seguir “ um caminho para o qual não existe modelo na vida real”, indica Freud. Ele não deve repelir o amor, tornando-o desagradável para a paciente, mas deve recusar-lhe qualquer contribuição. Sua função consiste em “tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes”, ajudando a trazer à tona “tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente”. Poderão então vir à luz “todas as suas precondições para amar, todas as fantasias que surgem de seus desejos sexuais”, de tal forma que “ela própria abrirá o caminho para as raízes infantis de seu amor”. É esta, portanto, a saída que Freud nos indica: não recusar o amor, nem corresponder a ele, mas convidá-lo a falar daquilo que a sua ruidosa manifestação silencia. Há aqui uma questão que Freud coloca, parecendo ser difícil também para ele: qual é a dimensão da realidade sobre a qual o amor transferencial nos dá testemunho? Trata-se de um amor “irreal”, como ele próprio acaba de dizer. Contudo, mais acima, já se referira a este amor como uma “súbita irrupção da realidade” na cena analítica. Portanto, ele se pergunta: podemos dizer que este não é um amor genuíno? Dois de seus aspectos parecem diferir do amor “verdadeiro”. O papel considerável que a resistência nele exerce é um deles. Contudo, observa Freud, a resistência não cria este amor; encontra-o à mão, e faz uso dele, agravando suas manifestações. O outro aspecto é o seu caráter de reedição de amores passados: “Compõe-se inteiramente de repetições e cópias de situações anteriores, inclusive infantis”. Entretanto, reproduzir protótipos da infância é o caráter essencial de todo estado amoroso. Poder-se-ia dizer ainda, continua Freud, que se trata de um amor ao qual falta em alto grau a consideração pela realidade: não se preocupa com as conseqüências, é cego na avaliação da pessoa amada. Mais uma vez, porém, cabe lembrar que esse afastamento da norma ocorre com todos os enamorados: “O amor comum, fora da análise, é ... mais semelhante aos fenômenos mentais anormais que aos normais”. Portanto, não se trata de dizer que o amor transferencial é falso: analisado mais detidamente, suas características são aquelas de todo amor. Tampouco se trata de dizer que é patológico, já que todo amor num certo sentido o é... O traço que lhe próprio é o de ser induzido pela situação analítica; portanto, dentro dela e segundo as vias que lhe são próprias é que deve ser abordado. Através dessas vias, podemos perceber que todo amor, num certo sentido, é irrealizável, na medida em que busca a fusão ou a cola. A insistência amorosa em fazer Um não pode jamais ser satisfeita: todo amor se danifica quando teima em realizá-la ao pé da letra. O amor, portanto, é uma experiência profundamente verdadeira, ao fazer-nos perceber a singularidade do nosso modo de amar. Mostra-nos a parede na qual não cessamos de bater a cabeça, a loucura que se apossa de nós quando o fazemos, o impasse subjetivo que aí nos desafia. Mas mostra-nos também como “qualquer maneira de amor vale a pena”, quando se pode inventar, mundo afora, maneiras novas e múltiplas de amar, partindo da dimensão radical do desejo. Afinal, de que adoecemos, a não ser de amor? Adoecemos de sua falta ou de seu excesso, de seus zelos e de seus desvarios, da sua perseguição e do seu abandono. Mas, certamente, não queremos nos curar do amor: afinal, de quê vivemos?! Interrogar o amor, não recuar diante das questões que nos coloca, sem crer cegamente no que nos diz, sem jamais considerá-lo mentiroso, em busca do desejo que ele ao mesmo tempo anuncia e esconde - assim entendemos a delicada manobra do manejo da transferência que o texto de Freud nos indica.

Ana Marta Lobosque

Grupo de Produção Temática em Saúde Mental – ESP-MG

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